António

Fiquei hoje em casa, um pouco adoentado, com suposições de doenças, de futuros quebrados, confusamente baço, sem lucidez de cérebro nem ponto de vista.(...)
Mais tarde abri todas as três janelas para receber mais claridade; invadiu-me a sombra triste, a melancolia do crepúsculo, a friagem antipática da humidade. Quando pus a testa sobre os vidros para espairecer os olhos pelo jardim que vegeta debaixo, lembrei-me de imensas coisas que passaram, dos meus tempos de criança, do colégio de que voltava às quatro horas a um toque de sineta, de minha irmã que morreu e que iluminava todas as casas com a sua beleza alta e sossegada, dos meus temas de francês, dum caixeiro que foi para o Brasil e que me agarrava ao colo balançando-me com ameaças e sustos de me arremessar lá no fundo do pátio que já não existe também.
Agora há aqui uma padaria em que se está erguendo uma chaminé enorme de forno, para deitar o fumo muito acima. Os pedreiros, porque era quase Ave-Marias, demoravam o trabalho devagarinho, poupavam o resto do aviamento, da cal; e tudo, a natureza, os arvoredos dos quintais próximos, a linha dos prédios na Praça da Alegria aonde mora o Oliveira, o rumor longínquo dos trens, e até um homem que passava descalço, com um regador verde numa das mãos, pelas sinuosidades das áleas no jardim; tudo, tudo me parecia lento, tristonho, com silêncios de preguiça iluminada.
(...)
No entanto, os desejos imensos de te enviar um bouquet de saudades.

Lisboa, 1877

Cesário

Obra Completa de Cesário Verde, 4ª edição, organizada, prefaciada e anotada por Joel Serrão, Livros Horizonte, Lisboa, 1983.