JOSÉ O HOMEM DOS SONHOS

Que nome dar ao poeta
esse ser dos espantos medonhos?
Um só encontro próprio e justo:
o de josé o homem dos sonhos

Eu canto os pássaros e as árvores
Mas uns e outros nos versos ponho-os
Quem é que canta sem condição?
É josé o homem dos sonhos

Deus põe e o homem dispõe
E aquele que ao longo da vereda vem
homem sem pai e sem mãe
homem a quem a própria dor não dói
bíblico no nome e a comer medronhos
só pode ser josé o homem dos sonhos.

Ruy Belo, Homem de Palavra[s]
Lisboa, Editorial Presença, 1999 (5ª ed.)


Ruy Belo

 





A poesia de Ruy Belo nas palavras de Joaquim Manuel Magalhães:

«Li os números de dois bilhetes de autocarro, deixados esquecidos por Ruy Belo numa edição do seu primeiro livro, anotada por sua mão. Um era da carreira entre a Póvoa e Vila do Conde; o outro, da Carris, para qualquer parte de Lisboa.

São resíduos oraculares. O inacessível mistério dos números, das memórias, da cor parda dos pequenos papéis deixava marcas enigmáticas para o acaso de um olhar futuro, póstumo, diálogo entre a morte e o que vai morrer. A fatalidade da minha leitura do poeta era guiada pelas suas próprias mãos inconscientes, depositando num livro que em sua vida permanecera em sombra uma luz difícil e encantatória.

Não sei bem que sentido literal ou literário pode ter esta memoriosa invocação de dois papéis ocasionais. Mas senti que o fio frágil e inexpugnável desses sinais me falava do transporte que é um dos centros mais persistentes da sua poesia: transporte no quotidiano, transporte entre as culturas, transporte entre a questão do humano e a dúvida do divino, transporte entre a vida e a sua mortalidade, «transporte no tempo».[...].»

Joaquim Manuel Magalhães

Posfácio a Obra Poética de Ruy Belo, vol. 1, Lisboa, Editorial Presença, 1984 (2ª ed.)

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