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A poesia de Ruy Belo
nas palavras de Joaquim Manuel Magalhães:
«Li os números de
dois bilhetes de autocarro, deixados
esquecidos por Ruy Belo numa edição do
seu primeiro livro, anotada por sua mão.
Um era da carreira entre a Póvoa e Vila
do Conde; o outro, da Carris, para
qualquer parte de Lisboa.
São resíduos
oraculares. O inacessível mistério dos
números, das memórias, da cor parda
dos pequenos papéis deixava marcas
enigmáticas para o acaso de um olhar
futuro, póstumo, diálogo entre a morte
e o que vai morrer. A fatalidade da
minha leitura do poeta era guiada pelas
suas próprias mãos inconscientes,
depositando num livro que em sua vida
permanecera em sombra uma luz difícil e
encantatória.
Não sei bem que
sentido literal ou literário pode ter
esta memoriosa invocação de dois papéis
ocasionais. Mas senti que o fio frágil
e inexpugnável desses sinais me falava
do transporte que é um dos centros mais
persistentes da sua poesia: transporte
no quotidiano, transporte entre as
culturas, transporte entre a questão do
humano e a dúvida do divino, transporte
entre a vida e a sua mortalidade, «transporte
no tempo».[...].»
Joaquim Manuel Magalhães
Posfácio
a Obra Poética de Ruy Belo, vol.
1, Lisboa, Editorial Presença, 1984 (2ª
ed.)
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