Na mesma estrada de sempre
o mesmo velho de sempre
dava corda ao realejo
que toca sem fazer som

tem as mãos da cor da terra
tem os pés presos à terra
vai tocando o realejo
sem se importar com o som

quando parti já lá estava
já era um velho que estava
a tocar o realejo
que rodava sem ter som

certamente tocou muito
certamente sabe muito
porque toca um realejo
que não precisa de som

só os cães ainda ouvem
só rosnam enquanto ouvem
o eterno realejo
que faz música sem som

se o velho um dia morresse
se esquecesse ou se morresse
no silêncio o realejo
pararia sem um som.

Helder Macedo
Viagem de Inverno
Lisboa, Presença, 1994


                                              Helder Macedo










Helder Macedo nasceu em 1935, na África do Sul, e viveu parte da sua infância em Moçambique. Em Lisboa, frequentou a Faculdade de Direito. Em 1961 partiu para Londres, onde se licenciou e doutorou em Literatura Portuguesa e História.

Radicado na capital britânica, regressou a Portugal por dois períodos (depois de 1974) para o desempenho de funções de responsabilidade política. Desde 1981, é o professor titular da Cátedra Camões no King’s College.

Além de cinco livros de poemas, entre os quais Poesia, 1957-1977 (1979) e Viagem de Inverno (1994), Helder Macedo publicou também os romances Partes de África (1991), Pedro e Paula (1998) e Vícios e Virtudes (2000). Da sua obra ensaística, destacam-se estudos dedicados a Bernardim Ribeiro, Camões e Cesário Verde.

O livro Vícios e Virtudes.

© Instituto Camões, 2001