HISTÓRIA ANTIGA

Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.

E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação. 

Mas,
Por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.

Miguel Torga
Antologia Poética
Coimbra, Ed. do Autor, 1981


                                         Miguel  Torga










Miguel Torga é o pseudónimo literário do médico Adolfo Correia da Rocha, nascido em S. Martinho de Anta, Trás-os-Montes, em 1907.

Aos treze anos deixou o Seminário de Lamego para ir para o Brasil, onde trabalhou durante cinco anos numa fazenda. Depois de regressar do Brasil, completou o curso dos liceus em apenas 3 anos e em 1933 concluiu o curso de Medicina na Universidade de Coimbra.

Colaborou na revista Presença, mas acabou por concluir que a autenticidade poética exigia o máximo de individualidade e fidelidade a si mesmo, optando por seguir um caminho próprio.

Distinguido com vários prémios, foi proposto duas vezes (1960 e 1991) para o Prémio Nobel .

Miguel Torga faleceu em Coimbra em 1995.

Poeta,  ficcionista, dramaturgo, ensaísta e memorialista, da sua  vasta obra podemos destacar Ansiedade, 1928;  A Criação do Mundo, 1937; Contos da Montanha, 1941; Diário (16 vols.), 1941-1993; Antologia Poética, 1981.

 

Pode saber mais sobre a vida e obra de Torga  e fruir alguns poemas.

© Instituto Camões, 2001