A abstracção não precisa de mãe nem pai

nem tão pouco de tão tolo infante

 

mas o natal de minha mãe é ainda o meu natal

com restos de Beira Alta

 

ano após ano via surgir figura nova nesse

presépio de vaca burro banda de música

 

ribeiro com patos farrapos de algodão muito

musgo percorrido por ovelhas e pastores

 

multidão de gente judaizante estremenha pela

mão de meu pai descendo de montes contando

 

moedas azenhas movendo água levada pela estrela

de Belém

 

um galo bate as asas um frade está de acordo

com a nossa circuncisão galinhas debicam milho

 

de mistura com um porco a que minha avó juntava

sempre um gato para dar sorte era preto

 

assim íamos todos naquela figuração animada

até ao dia de Reis aí estão

 

um de joelhos outro em pé

e o rei preto vinha sentado no

 

camelo. Era o mais bonito.

depois eram filhoses o acordar de prenda no

 

sapato tudo tão real como o abrir das lojas no dia

de feira

 

e eu ia ao Sanguinhal visitar a minha prima que

tinha um cavalo debaixo do quarto

 

subindo de vales descendo de montes

acompanhando a banda do carvalhal com ferrinhos

 

e roucas trompas o meu Natal é ainda o Natal de

minha mãe com uns restos de canela e Beira Alta.

 

  

João Miguel Fernandes Jorge, Actus Tragicus

Lisboa, Editorial Presença, 1979


 JOÃO  MIGUEL  FERNANDES  JORGE

Nasceu em 1943 no Bombarral. Formado em Filosofia pela Universidade de Lisboa, é professor do ensino secundário. Poeta e crítico de arte, a sua obra funde múltiplos campos semânticos num intenso diálogo com memórias e outras vozes. Destacamos algumas obras: Sob sobre Voz, 1971; O Regresso dos Remadores, 1982; Pelo Fim da Tarde,1989; Antologia Poética: 1971-199; Fins-de-Semana, 1993; Abstract e Tartarugas, 1995 e A Flor da Rosa, 2001.

 


Leia alguns poemas de livros do autor.

 

© Instituto Camões, 2001