CÃO

Cão passageiro, cão estrito,

cão rasteiro cor de luva amarela,

apara-lápis, fraldiqueiro,

cão liquefeito, cão estafado,

cão de gravata pendente,

cão de orelhas engomadas,

de remexido rabo ausente,

cão ululante, cão coruscante,

cão magro, tétrico, maldito,

a desfazer-se num ganido,

a refazer-se num latido,

cão disparado: cão aqui,

cão além, e sempre cão.

Cão marrado, preso a um fio de cheiro,

cão a esburgar o osso

essencial do dia a dia,

cão estouvado de alegria,

cão formal da poesia,

cão-soneto de ão-ão bem martelado,

cão moído de pancada

e condoído do dono,

cão: esfera do sono,

cão de pura invenção, cão pré-fabricado,

cão-espelho, cão-cinzeiro, cão-botija,

cão de olhos que afligem,

cão-problema...

Sai depressa, ó cão, deste poema!

 


Alexandre O'Neill
Poesias Completas. 1951-1986
Lisboa, INCM, 1990 (3ª ed.)













Sobre a poesia de ALEXANDRE O’NEILL

«O’Neill usa com frequência imagens de animais como referência dum destino ou duma situação infra-humanos ou para-humanos. A mosca entre a cortina e a vidraça é a imagem da nossa situação «entalada» no microcosmos do quotidiano e, dum modo mais geral, no macrocosmos do País e até da condição humana. Os ratos são a referência imagética que aparece por exemplo no «Poema pouco original do medo» para sugerir a existência degradante no silêncio e no medo. O poema «Cão» utiliza também a imagem animal, desta vez para mostrar o homem-cão na sua condição existencial («cão passageiro»), social («cão de gravata pendente»), civilizacional («cão pré-fabricado»), psicológia («cão: esfera do sono»), afectiva («cão estouvado de alegria»). O verso «cão rasteiro cor de luva amarela», que é uma citação de Rilke (Os Cadernos de Malte Laurids Brigge), dá ainda uma dimensão transtextual à descrição.»


Clara Rocha, prefácio a Poesias Completas.1951/1986 de Alexandre O’Neill

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© Instituto Camões, 2002