Notícias do Bloqueio

Aproveito a tua neutralidade,

o teu rosto oval, a tua beleza clara,

para enviar notícias do bloqueio

aos que no continente esperam ansiosos.

 

Tu lhes dirás do coração o que sofremos

nos dias que embranquecem os cabelos...

tu lhes dirás a comoção e as palavras

que prendemos – contrabando – aos teus cabelos.

 

Tu lhes dirás o nosso ódio construído,

sustentando a defesa à nossa volta

- único acolchoado para a noite

florescida de fome e de tristezas.

 

Tua neutralidade passará

por sobre a barreira alfandegária

e a tua mala levará fotografias,

um mapa, duas cartas, uma lágrima...

 

Dirás como trabalhamos em silêncio,

como comemos silêncio, bebemos

silêncio, nadamos e morremos

feridos de silêncio duro e violento.

 

Vai pois e noticia com um archote

aos que encontrares de fora das muralhas

o mundo em que nos vemos, poesia

massacrada e medos à ilharga.

 

Vai pois e conta nos jornais diários

ou escreve com ácido nas paredes

o que viste, o que sabes, o que eu disse

entre dois bombardeamentos já esperados.

 

Mas diz-lhes que se mantém indevassável

o segredo das torres que nos erguem,

e suspensa delas uma flor em lume

grita o seu nome incandescente e puro.

 

Diz-lhes que se resiste na cidade

desfigurada por feridas de granadas

e enquanto a água e os víveres escasseiam

aumenta a raiva

e a esperança reproduz-se

 

1952

Egito Gonçalves
O Pêndulo Afectivo - Antologia Poética, 1950-1990
Porto, Afrontamento, 1991


EGITO GONÇALVES

Egito Gonçalves nasceu em 1922, em Matosinhos. Começou a publicar os seus livros de poesia no início da década de 50. O seu nome aparece-nos ligado, a partir dessa altura, a algumas revistas de poesia que fundou e/ou dirigiu: A Serpente (1951), Árvore (1952), Notícias do Bloqueio (1957).

Poeta e tradutor, Egito Gonçalves desempenhou ao longo da sua vida um grande papel na animação literária e cultural do Porto, a cidade onde viveu. Foi um dos fundadores do TEP – Teatro Experimental do Porto. Faleceu em 2001.

Alguns destaques na poesia de Egito Gonçalves:

Um Homem na Neblina (1950)
A Viagem com o Teu Rosto (1958)
Os Arquivos do Silêncio (1963)
Falo da Vertigem (1993)
E no Entanto Move-se (1995)
O Mapa do Tesouro (1998)
A Ferida Amável (2000)

Ler ou alguns poemas de Egito Gonçalves.


© Instituto Camões, 2002