Janeiro de Sessenta e Dois

Janeiro português que entrou mansinho

desistiu quase pela chuva

mas entrou

limpando docemente os pés.

Mas quase um janeiro de almanaque:

com burros em Lisboa cochichando

com damas coroadas de cinzento

e os pobres aos pulinhos nos cafés.

Sacodem-no apressadas as varinas

ideias adoecem-no sem asas

e os burgueses roçam com a língua

plo ventre melancólico das casas.

Seus dias vão depressa para os ardinas

poleiro persistente onde um cavalo

relincha no colo das semanas

miando desastrado como os sinos

metido com vamps americanas.

Janeiro português por onde poisas

doméstica abelha sem corola

arrastas sem saber o gosto às coisas

e a tia chega ao fim da camisola...

Armando Silva Carvalho

Obra Poética (1965-1995)
Porto, Afrontamento, 1998



ARMANDO SILVA CARVALHO

Nasceu em Óbidos, em 1938. Licenciado em Direito, tem desenvolvido actividade como tradutor, jornalista e técnico publicitário.
O poema «Janeiro de sessenta e dois» é extraído de Lírica Consumível, o primeiro livro do poeta, publicado em 1965 e distinguido com o Prémio Revelação da então Sociedade Portuguesa de Escritores.
A obra de Armando Silva Carvalho reparte-se entre a poesia e a ficção, géneros que por vezes se contaminam nos seus livros. Recebeu o Prémio PEN Club em 1995.

Alguns destaques na obra do autor:

Poesia:

Lírica Consumível (1965)
Técnicas de Engate (1979)
Sentimento dum Acidental (1981)
Canis Dei (1995)
Lisboas (2000)

Romance:

Portuguex (1977)
Donamorta (1984)
Em Nome da Mãe (1994)
O Homem que Sabia a Mar (2001)

Para saber mais sobre Armando Silva Carvalho.


© Instituto Camões, 2002