CARTA

 

 

Bem quisera escrevê-la

com palavras sabidas,

as mesmas, triviais,

embora estremecessem

a um toque de paixão.

Perfurando os obscuros

canais de argila e sombra,

ela iria contando

que vou bem, e amo sempre

e amo cada vez mais

a essa minha maneira

torcida e reticente,

e espero uma resposta,

mas que não tarde; e peço

um objeto minúsculo

só para dar prazer

a quem pode ofertá-lo;

diria ela do tempo

que faz do nosso lado

as chuvas já secaram,

as crianças estudam,

uma última invenção

(inda não é perfeita)

faz ler nos corações,

mas todos esperamos

rever-nos bem depressa.

Muito depressa, não.

Vai-se tornando tempo

estranhamente longo

à medida que encurta.

O que ontem disparava,

desbordado alazão,

hoje se paralisa

em esfinge de mármore,

e até o sono, o sono

que era grato e era absurdo

é um dormir acordado

numa planície grave.

Rápido é o sonho, apenas,

que se vai, de mandar

notícias amorosas

quando não há amor

a dar ou receber;

quando só há lembrança

ainda menos, pó,

menos ainda, nada,

nada de nada em tudo,

em mim mais do que em tudo,

e não vale acordar

quem acaso repousa

na colina sem árvores.

Contudo, esta é uma carta.

Carlos Drummond de Andrade

Antologia Poética

Rio de Janeiro / São Paulo, Editora Record, 1999


«Acho que a literatura, tal como as artes plásticas e a música, é uma das grandes consolações da vida, e um dos modos de elevação do ser humano sobre a precariedade da sua condição.»

 

 

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

 

Escritor brasileiro, nasceu em 1902, em Itabira, no Estado de Minas Gerais. Estudou na cidade de Belo Horizonte e no Colégio Anchieta de Nova Friburgo (Estado do Rio de Janeiro), de onde foi expulso por «insubordinação mental».

Em 1921, começou a colaborar com o jornal Diário de Minas, que aglutinava os adeptos locais do incipiente movimento modernista mineiro. Em 1925, diplomou-se em Farmácia na cidade de Ouro Preto, profissão pela qual demonstrou pouco interesse.

Ingressou no serviço público e, em 1934, transferiu-se para o Rio de Janeiro. A partir de 1945, passou a trabalhar no Serviço do Património Histórico e Artístico Nacional até se aposentar, em 1962. Desde 1954 colaborou como cronista no Correio da Manhã e, a partir do início de 1969, no Jornal do Brasil.

Faleceu em 1987, deixando atrás de si uma extensa obra de poesia e prosa. Foi um dos mais influentes poetas brasileiros do século XX e a sua obra encontra-se traduzida em várias línguas.

 

Alguns destaques na obra de Drummond de Andrade:

 

Alguma Poesia (1930)

Sentimento do Mundo (1940)

A Rosa do Povo (1945)

Contos de Aprendiz (1951)

Lição de Coisas (1962)

Caminhos de João Brandão (1970)

De Notícias e Não Notícias Faz-se a Crônica (1974)

A Paixão Medida (1980)

O Amor Natural (1981)

Farwell (1996)

 

 

Para conhecer melhor o poeta.

Escutar alguns poemas de Drummond de Andrade.


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