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CARTA A MEUS FILHOS SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA
Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
(...)
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objeto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.
Lisboa, 25/6/1959
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JORGE DE SENA
Jorge de Sena nasceu em Lisboa, em 1919, e morreu em Santa Bárbara, Califórnia (EUA), em 1978. Formou-se em Engenharia Civil pela Universidade do Porto. De 1948 a 1959, foi engenheiro da Junta Autónoma de Estradas.
Em 1959 partiu para o Brasil, onde se doutorou em Letras. A partir de 1965, passou a viver nos EUA. Foi professor na Universidade de Wisconsin e, depois, na Universidade da Califórnia Santa Bárbara. À data da sua morte, era Director do Departamento de Espanhol e Português e do Programa de Literatura Comparada daquela Universidade.
O nome de Jorge de Sena aparece inicialmente ligado à revista literária «Cadernos de Poesia», primeiro como colaborador, depois como elemento da direcção. Além de poeta, foi ficcionista, dramaturgo, ensaísta e tradutor.
Alguns destaques na obra de Jorge de Sena:
Poesia:
Perseguição (1942)
Metamorfoses (1963)
Peregrinatio ad Loca Infecta (1969)
Exorcismos (1972)
Ficção:
Os Grão-Capitães (1976) contos
O Físico Prodigioso (1977) novela
Sinais de Fogo (1979) romance
Teatro:
O Indesejado (1951)
Ensaio:
O Reino da Estupidez I (1961)
Uma Canção de Camões (1966)
Dialécticas Aplicadas da Literatura (1978)
Jorge de Sena na literatura portuguesa.
Para ouvir alguns poemas.
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