(a carta da paixão)

 

Esta mão que escreve a ardente melancolia

da idade

é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,

que à imagem do mundo aberta de têmpora

a têmpora

ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra

a sua queimadura desde os recessos negros

onde

se formam

as estações até ao cimo,

nas sedas que se escoam com a largura

fluvial

da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas

e o silêncio todo branco.

Os dedos.

A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua

alumia-se. O mel escurece dentro da veia

jugular talhando

a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se

a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas

obscuras, a lua

tece as ramas de um sangue mais salgado

e profundo. E o marfim amadurece na terra

como uma constelação. O dia leva-o, a noite

traz para junto da cabeça: essa raiz de osso

vivo. A idade que escrevo

escreve-se

num braço fincado em ti, uma veia

dentro

da tua árvore. Ou um filão ardido de ponta a ponta

da figura cavada

no espelho. Ou ainda a fenda

na fronte por onde começa a estrela animal.

 

(...)

(excerto de Photomaton & Vox, 1979)

Herberto Helder

Poesia Toda

Lisboa, Assírio & Alvim, 1990


Nuno Júdice escreve sobre a poesia de HERBERTO HELDER:

 

 

«Desde os primeiros livros (O Amor em Visita, 1958, e A Colher na Boca, 1961) a poesia de Herberto Helder tornou-se um momento ímpar na afirmação daquilo que, em Portugal, se pode considerar como a mais conseguida realização do visionarismo poético ocidental, que recebe a herança de Rimbaud e Lautréamont e passa pelo surrealismo. Helder consegue imprimir a essa tradição o sulco pessoal de uma linguagem que tem a capacidade de conferir a um metaforismo  de absoluta liberdade a marca concreta de uma alusão física e material ao ser poético enquanto corpo simultaneamente de palavras e de carne, conseguindo um efeito único de transmutação da linguagem num corpo vivo, na linha da «alquimia do verbo» de Rimbaud.»

 

 

Dicionário de Literatura Portuguesa

Org. Álvaro Manuel Machado

Lisboa, Editorial Presença, 1996

 

 

Herberto Helder na poesia portuguesa do século XX.


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