É amargo o coração do poema. A mão esquerda em cima desencadeia uma estrela, em baixo a outra mão mexe num charco branco. Feridas que abrem, reabrem, cose-as a noite, recose-as com linha incandescente. Amargo. O sangue nunca pára de mão a mão salgada, entre os olhos, nos alvéolos da boca. O sangue que se move nas vozes magnificando o escuro atrás das coisas, os halos nas imagens de limalha, os espaços ásperos que escreves entre os meteoros. Cose-te: brilhas nas cicatrizes. Só essa mão que mexes ao alto e a outra mão que brancamente trabalha nas superfícies centrífugas. Amargo, amargo. Em sangue e exercício de elegância bárbara. Até que sentado ao meio negro da obra morras de luz compacta. Numa radiação de hélio rebentes pela sombria violência dos núcleos loucos da alma. (poema de Última Ciência, 1988) |
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Sobre o livro Última Ciência: «Em Última Ciência, a vida contempla-se no seu extremo, no cume que atinge pela linguagem: a vida, dádiva da poesia, criação do mundo que repousa virtualmente na noite. O eu apodera-se de si lançando fios, linhas de escrita, que abrem caminhos divergentes: da infância ao caos materno, do grito ao silêncio ou à iluminação arborescente, da consciência à cegueira, do instinto à melancolia. E as coisas ressurgem do limbo para a plena presença, transfiguradas na matéria das palavras.» Silvina Rodrigues Lopes Aprendizagem do Incerto Lisboa, Litoral Edições, 1990 Ler outro poema de Herberto Helder. |
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