Amanhã aconteceu


Que é notícia?

Um hoje que nunca é hoje,

um amanhã que é já ontem

entre ontens que se perdem

no anteontem dos anos

no tresantontem dos lustros...

Que é notícia?

Amanhã acontecido,

notícia é sempre um depois,

é um a viver vivido...

Que é notícia?

Notícia é devoração!

Aí vai ela pela goela

que há-de engolir tudo e todos!

Aí vai ela, lá foi ela!

Nem trabalho de moela

retém notícia...

Notícia sem coração!

Que é notícia?

Cão perdeu-se! Por que não?

Cão achou-se! Ainda bem!

Ainda melhor, por sinal,

se o cão perdido e o achado

forem um só e o mesmo

«lidos» no mesmo jornal!

Que é notícia?

Damos notícia um ao outro

do nosso interesse comum.

Fui Cavalheiro amanhã.

Ontem Senhora serás.

Como eu não há nenhum!...

Que é notícia?

Quando o primeiro tortulho

se abre no céu (silhueta

que em símbolo se tornará)

onde estou, estouvava eu?

Estava com a tia Henriqueta...

Que é notícia?

Fechada para balanço,

tia Queta dormitava.

Com a folhinha nos joelhos,

do tortulho, que treslera,

já em feto se engelhava...

Que é notícia?

Das convulsões deste mundo

dava meu pai a versão:

- Ailitla por toda a Europa...

O guarda-roupa, meu filho,

varia, a tragédia não...

Que é notícia?

O bom do velhote ia

na terceira dentição...

Que é notícia?

Alcatruz que se abalança

a tornar à sua água?

Já o de Éfeso sabia:

não se molha duas vezes

o lenço na mesma mágoa...

Que é notícia?

Notícia em primeira mão

na minha mão infantil:

o papagaio empinado

no claro céu da manhã,

meu jornal publicado

por cima de tanto afã...

Mas terá sido notícia?

Que é notícia?



Alexandre O'Neill
De Ombro na Ombreira (1969)
In Poesias Completas

Lisboa, Assírio & Alvim, 2000


ALEXANDRE O'NEILL

 

Nasceu em 1924 e faleceu em 1986.

Poeta, contribuiu para a introdução do Surrealismo em Portugal.

A propósito de O’ Neill, escreveu Miguel Tamen:

«O primeiro poema de O’Neill de que me lembro estava justamente num caixote de lixo. Por volta de 1970 ou 71, a descer o Parque Eduardo VII em Lisboa, afixado no lado exterior de um caixote de lixo:

AVENIDA DA LIBERDADE

Subamos e desçamos a Avenida,

Enquanto esperamos por uma outra
(ou pela outra) vida.

Nessa altura, não me ocorreu que podia haver uma relação entre o poema e avenida, também chamada da liberdade, que começava umas escassas centenas de metros abaixo. Tinha dez ou onze anos, mas em qualquer caso o senso suficiente para perceber que a injunção, quer dizer, que ninguém me estava a convidar a subir ou descer a Avenida da Liberdade, e muito menos a esperar por alterações na minha vida. Mais tarde percebi o que suponho que quem lá pôs os versos queria que eu percebesse, a saber que tinha graça podermos, em Lisboa, ler poemas sobre Lisboa – ainda por cima ler poemas sobre a Avenida da Liberdade tão perto da Avenida da Liberdade – e, se possível, mudar de vida.»

(prefácio a Poesias Completas, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000)


Entre as obras de Alexandre O'Neill, destacam-se:

A Ampola Milagrosa (1948)

No Reino da Dinamarca (1958)

Poemas com Endereço (1962)

Tomai lá do O’Neill (1986)



Para saber mais sobre Alexandre O'Neill.


© Instituto Camões, 2002