O navio de espelhos

não navega, cavalga

Seu mar é a floresta

que lhe serve de nível

Ao crepúsculo espelha

sol e lua nos flancos

Por isso o tempo gosta

de deitar-se com ele

Os armadores não amam

A sua rota clara

(Vista do movimento

dir-se-ia que pára)

Quando chega à cidade

nenhum cais o abriga

O seu porão traz nada

nada leva à partida

Vozes e ar pesado

é tudo o que transporta

E no mastro espelhado

uma espécie de porta

Seus dez mil capitães

têm o mesmo rosto

A mesma cinta escura

o mesmo grau e posto

Quando um se revolta

há dez mil insurrectos

(Como os olhos da mosca

reflectem os objectos)

E quando um deles ala

o corpo sobre os mastros

e escruta o mar do fundo

Toda a nave cavalga

(como no espaço os astros)

Do princípio do mundo

até ao fim do mundo


Mário Cesariny

A Cidade Queimada

Lisboa, Assírio & Alvim, 2000


CESARINY - ENTRE A POESIA E A PINTURA


Considerado o expoente do surrealismo em Portugal e conhecido sobretudo como poeta, Mário Cesariny é autor de uma obra plástica com mais de meio século, à qual se tem dedicado quase exclusivamente nos últimos anos.

Depois das exposições de «Os Surrealistas» e de uma exposição de capas-poemas-objectos em 1956, Cesariny oferece a sua primeira exposição individual ao público em 1958, na Galeria do Diário de Notícias. Depois, expõe no Porto, na Galeria Divulgação. Nas décadas seguintes, apresentará várias individuais e participará em colectivas, em Portugal e no estrangeiro (Bruxelas, Chicago e São Paulo, por exemplo). Para mostrar os seus trabalhos mais recentes ou inéditos, é de assinalar a preferência de Cesariny pela pequena galeria Neupergama, situada em Torres Novas.


Na história da arte portuguesa do século XX, destaca-se o papel de Cesariny na introdução da dimensão informal (explorando técnicas e materiais pouco convencionais) e a influência da sua obra em artistas mais jovens como Paula Rego, António Areal e Álvaro Lapa.

Em Dezembro de 2002, a obra plástica de Cesariny foi contemplada com o Grande Prémio EDP de artes plásticas.



Mário Cesariny e a pintura – por Bernardo Pinto de Almeida.

M. Cesariny, «Heloïsa»

© Instituto Camões, 2003