O Poeta em Lisboa


Quatro horas da tarde.

O poeta sai de casa com uma aranha nos cabelos.

Tem febre. Arde.

E a falta de cigarros faz-lhe os olhos mais belos.

Segue por esta, por aquela rua

sem pressa de chegar seja onde for.

Pára. Continua.

E olha a multidão, suavemente, com horror.

Entra no café.

Abre um livro fantástico, impossível.

Mas não lê.

Trabalha - numa música secreta, inaudível.

Pede um cigarro. Fuma.

Labaredas loucas saem-lhe da garganta.

Da bruma

espreita-o uma mulher nua, branca, branca.

Fuma mais. Outra vez.

E atira um braço decepado para a mesa.

Não pensa no fim do mês.

A noite é a sua única certeza.

Sai de novo para o mundo.

Fechada à chave a humanidade janta.

Livre, vagabundo

dói-lhe um sorriso nos lábios. Canta.

Sonâmbulo, magnífico

segue de esquina em esquina com um fantasma ao lado.

Um luar terrífico

vela o seu passo transtornado.

Seis da madrugada.

A luz do dia tenta apunhalá-lo de surpresa.

Defende-se à dentada

da vida proletária, aristocrática, burguesa.

Febre alta, violenta

e dois olhos terríveis, extraordinários, belos.

Fiel, atenta

a aranha leva-o para a cama arrastado pelos cabelos.

António José Forte

Uma Faca nos Dentes

Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 2003


ANTÓNIO JOSÉ FORTE

Nasceu em 1931, na Póvoa de Santa Iria. Ligado ao movimento surrealista, fez parte na década de 50 do chamado grupo do Café Gelo. Trabalhou na Fundação Calouste Gulbenkian, onde desempenhou durante mais de vinte anos as funções de Encarregado das Bibliotecas Itinerantes.

Faleceu em Dezembro de 1988.

Alguns livros:

40 Noites de Insónia de Fogo de Dentes numa Girândola Implacável e Outros Poemas (1958)

Uma Rosa na Tromba do Elefante (1971) – livro para crianças

Uma Faca nos Dentes (1983) – pref. de Herberto Helder e desenhos de Aldina

Azuliante (1984)

Caligrafia Ardente (1987)

Corpo de Ninguém (1989)

Uma Faca nos Dentes (2003) – reed., com inéditos


Mano Forte – correspondência entre Luiz Pacheco e A. J. Forte.


© Instituto Camões, 2003