Arte Poética


Gostaria de começar com uma pergunta

ou então com o simples facto

das rosas que daqui se vêem

entrarem no poema.

O que é então o poema?

um tecido de orifícios por onde entra o corpo

sentado à mesa e o modo

como as rosas me espreitam da janela?

Lá fora um jardineiro trabalha,

uma criança corre, uma gota de orvalho

acaba de evaporar-se e a humidade do ar

não entra no poema.

Amanhã estará murcha aquela rosa:

poderá escolher o epitáfio, a mão que a sepulte

e depois entrar num canteiro do poema,

enquanto um botão abre em verso livre

lá fora onde pulsa o rumor do dia.

O que são as rosas dentro e fora

do poema? Onde estou eu no verso em que

a criança se atirou ao chão cansada de correr?

E são horas do almoço do jardineiro!

Como se fosse indiferente a gota de orvalho

ter ou não entrado no poema!


Rosa Alice Branco

Soletrar o Dia. Obra Poética

Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições, 2002


ROSA ALICE BRANCO

Doutorada em Filosofia do Conhecimento, ensina Psicologia da Percepção e Cultura Contemporânea na Escola Superior de Artes e Design de Matosinhos. É investigadora da Unidade de Investigação em Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro.

Da sua poesia disse-nos Maria Irene Ramalho:

A leitura dos poemas de Rosa Alice Branco ensina-nos como «o sentido», «a sensação», «o sofrimento» se entrelaçam no poema para gerar o mundo perceptível.


Algumas obras:

Poesia

Animais da Terra (1988)

A Mão Feliz – poemas d(e)ícticos (1994)

O Único Traço do Pincel (1997)

Da Alma e dos Espíritos Animais (2001)

Soletrar o Dia. Obra Poética (2002)

Ensaio

O que Falta ao Mundo para Ser Quadro (1993)

A Percepção Visual em Berkeley (1998)

Ler outro poema de Rosa Alice Branco.


© Instituto Camões, 2003