A Máquina Fotográfica


É na câmara escura dos teus olhos

que se revela a água

água imagem

água nítida e fixa

água paisagem

boa nariz cabelos e cintura

terra sem nome

rosto sem figura

água móvel nos rios

parada nos retratos

água escorrida e pura

água viagem trânsito hiato.

Chego de longe. Venho em férias. Estou cansado.

Já suei o suor de oito séculos de mar

o tempo de onze meses de ordenado;

por isso, meu amor, viajo a nado

não por ser português mal empregado

mas por sofrer dos pés

e estar desidratado.

Chego. Mudo de fato. Calço a idade

que melhor quadra à minha solidão

e saio a procurar-te na cidade

contrastada violenta negativa

tu única sombra murmurada

única rua mal iluminada

única imagem desfocada e viva.

Moras aonde eu sei.

É na distância

onde chego de táxi.

Sou turista

com trinta e seis hipóteses no rolo;

venho ao teu miradoiro ver a vista

trago a minha tristeza a tiracolo.

Enquadro-te regulo-te disparo-te

revelo-te retoco-te repito-te

compro um frasco de tédio e um aparo

nas tuas costas ponho uma estampilha

e escrevo aos meus amigos que estão longe

charmant pays

                                        the sun is shining

                                                                                     love.

Emendo-te  rasuro-te  preencho-te

assino-te  destino-te  comando-te

és o lugar concreto onde procuro

a noite de passagem  o abrigo seguro

a hora de acordar que se diz ao porteiro

o tempo que não segue  o tempo em que não duro

senão um dia inteiro.

Invento-te  desbravo-te  desvendo-te

surges letra por letra, película sonora,

do sendo à vogal  do tema à consoante

sem presença no espaço  sem diferença na hora.

És a rota da Índia  o sarcasmo do vento

a cãibra do gajeiro  o erro do sextante

o acaso  a maré  o mapa a descoberta

dum novo continente itinerante.


José Carlos Ary dos Santos

Obra Poética

Lisboa, Edições Avante, 1994


JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS

José Carlos Ary dos Santos nasceu em Lisboa, em 1937.

Foi técnico de publicidade, poeta e declamador. Após a revolução de Abril e a sua militância comunista, tornou-se também autor de letras para canções militantes. É autor de vários poemas que renovaram a canção popular portuguesa.

Algumas obras:

Asas (1953)

A Liturgia do Sangue (1963)

Adereços, Endereços (1965)

Insofrimento in Sofrimento (1969)

Fotos-Grafias (1970)

Resumo (1971)

As Portas que Abril Abriu (1975)

O Sangue das Palavras (1978)

20 Anos de Poesia (1983)


Para saber mais sobre Ary dos Santos.


© Instituto Camões, 2003