Um dia diferente

PARTE 1
Universidade de Genebra
Leitora: Dr.ª Rosa Correia

O senhor Silva acordou muito mal disposto. O dia estava cinzento e, além disso, era 2.ª feira. Houvesse chuva ou sol, para ele todos os dias eram cinzentos e difíceis como um começo de semana. Abrir um olho, depois o outro, esticar-se, sentar-se, calçar os chinelos, procurar forças para caminhar até à casa de banho. O reflexo do espelho mostrava a cara dum homem tristonho, amuado, pálido e sonolento como sempre, perdido numa casa um pouco à imagem dele, desolada, lúgubre e abafada. Ao dirigir-se lentamente até à janela pisou um resto de pizza esquecida no meio do salão, pô-la sobre a mesa onde iria, eventualmente, mais logo, preparar um café com leite acompanhado dum papo-seco com manteiga, mais nada.
Preparar-se-ia depois para ir para a fabrica onde passaria o dia todo, no meio daquela cacofonia de barulhos diversos, o vapor das máquinas, as rodas de metal a chorarem a cada volta dada… é que as coisas mais belas do mundo criam-se na dor e no esforço, os bebés nos gritos das mães, as obras de arte na introspecção do próprio artista, procurando os sentimentos mais fortes e ele, o Sr. Silva, perto dos quarenta, fabricava brinquedos: triciclos, bonecas, bolas de berlinde, carrinhos. Fabricava, no tédio e no mau humor que lhe era habitual, os risos das crianças.
Puxou então, numa feição de quase esforço, os cortinados, e não percebeu logo o que estava sucedendo… fez marcha atrás, pegou nos óculos perdidos no sofá, ajustou-os sobre aquele pequeno nariz ossoso e torto olhou de novo para a janela, pensou que estava em pleno delírio. Não estava. O cenário em que parecia estar metido era bem real, visto que se defrontou com barras de ferro no lado exterior da varanda. Com um sentimento de pânico e estupefacção a crescer nele perguntou-se: “Mas que raios está a passar-se aqui?!!” Correu logo para as outras janelas para verificar se o mesmo tinha acontecido, e meio enlouquecido meio perplexo precipitou-se imediatamente para a porta pensandoque ia encontrar o mesmo, e ao abri-la defrontou-se com um muro onde estava inscrito em letras de ouro:

O sorriso é a chave da liberdade.
“O que é isto?! o que ‘tá p’ráquí a acontecer?!”.
Em total desespero e cheio de raiva começou aos murros, violentamente, nesse betão indestrutível que o mantinha recluso na sua própria casa. De repente retiniu o telefone, ele parou, surpreso, e excitante atendeu…: “- Estou?” Perguntou ele pouco seguro…”Estou??! Quem fala?!” Como única resposta, obteve um profundo e lento respirar que desatou, finalmente, numa grande gargalhada, e num tom risonho: “é hoje, meu amigo, é hoje que tens de aprender a sorrir, pois é a chave da liberdade.” A voz estranha desligou o Sr. Silva resignado e visivelmente agastado pela natureza dos eventos, arrastou-se até ao sofá e deixou-se cair nele. Ali estava ele, sozinho, inerte no meio do salão, olhar perdido na vastidão do tecto, e lá fora, a Baixa de Lisboa, começava, ela também, a acordar. Mas, aparentemente, mais serenamente e feliz. O dia estava lindo, e além disso, era 2.ª feira.

continuação

Autores:
Université de Genève-Lettres
Mónica Marques
Hugo Moura
Sónia Gregório

© Instituto Camões, 2001