Alexandre Herculano
Alexandre Herculano, por Ana Maria dos Santos Marques
Alexandre Herculano |
Nascido em 28 de março de 1810, Alexandre Herculano estuda Humanidades no colégio dos Oratorianos com vista à matrícula na Universidade, mas a cegueira do pai força-o a abdicar desse projeto e a limitar-se a um curso prático de Comércio, estudos de Diplomática (Paleografia) e de Línguas. Desde muito jovem que a sua vocação para as letras se manifesta: lê e traduz escritores românticos estrangeiros, como Schiller, Klopstock, ou Chateaubriand, escreve poesia, conhece Castilho e frequenta os salões da Marquesa de Alorna.
Em 1831, depois do envolvimento na conspiração de 21 de agosto contra o regime absolutista de D. Miguel, exila-se primeiro em Inglaterra e depois em França. Aqui, e mais concretamente na biblioteca de Rennes, Herculano dedica-se ao estudo e inicia-se em Thierry, Guizot, Victor Hugo e Lamennais, autores que influenciarão profundamente a sua obra.
Em 1832, chega à ilha Terceira, nos Açores, integrado na expedição liberal liderada por D. Pedro e responsável pelo cerco do Porto. Nesta cidade, e depois da vitória liberal, é nomeado, em 1833, segundo bibliotecário da Biblioteca Pública e procede à sua organização.
Colabora no Repositório Literário (1834-1835) com vários artigos, dos quais se destacam dois que podem ser vistos como uma primeira teorização portuguesa do Romantismo. O primeiro, “Qual é o estado da nossa literatura? Qual o trilho que ela hoje deve seguir?”, apresenta um diagnóstico da literatura portuguesa e avança uma solução para o seu estado de decadência: o conhecimento das literaturas estrangeiras, principalmente da alemã, uma das primeiras em que o Romantismo se implantou. No outro texto, “Poesia – Imitação – Belo - Unidade”, Herculano sublinha a necessidade de a literatura portuguesa se voltar para as suas origens e traduz uma consciência nacional e moral que limita a visão da estética romântica europeia, condenando a “imoralidade” e a “irreligião” que, em sua opinião, Byron representava. Esta consciência nacional e moral está presente desde o início da sua poesia, através de um paralelismo estabelecido entre religião e pátria, espécie de profissão de fé do poeta romântico, que Herculano integrou numa visão liberal da sociedade, visível, por exemplo, em “A Semana Santa” (1829).
Em 1836, vem a público a primeira série de A Voz do Profeta (2ª série, 1837), folheto de caráter panfletário contra a Revolução de setembro, escrito no estilo grandiloquente de Paroles d’un Croyant de Lamennais. No ano seguinte, funda e dirige O Panorama, revista literária responsável pela divulgação da estética romântica, na qual Herculano publica estudos eruditos e as suas primeiras narrativas históricas.
Em 1838, publica A Harpa do Crente, coleção das poesias mais importantes, reeditada em 1850 com traduções/versões de Béranger (“O Canto do Cossaco”), Bürger (“O Caçador Feroz”, “Leonor”), Delavigne (“O Cão do Louvre”), Lamartine (“A Costureira e o Pintassilgo Morto”) e uma balada fantasmagórica ao gosto inglês (“A Noiva do Sepulcro”). As poesias desta coletânea apresentam reflexões sobre a morte, Deus, a liberdade, o contraste entre o inexorável fluir da vida humana e a permanência do infinito. Normalmente, estas meditações têm por testemunha uma paisagem, que impõe o sentimento da solidão e da infinitude, e traduz uma marcada oposição entre a cidade e o campo (por exemplo, “A Arrábida”). Está também presente um conjunto de poemas que se referem à guerra civil e ao exílio, testemunhos poéticos da instauração do liberalismo e da saudade do desterrado. Herculano tenta também dar voz à contemporaneidade através da poesia, à semelhança de Victor Hugo, atribuindo-lhe uma função pública, doutrinária e intervencionista e tratando temas de interesse político, social e religioso (“A Semana Santa”, “A Cruz Mutilada”; “O Mosteiro Deserto”; “A Vitória e a Piedade”, por exemplo). A nível formal, a poesia de Herculano apresenta uma retórica solene, com insistência num vocabulário evocativo do “belo horrível”, apocalíptico e sepulcral, longos eufemismos e alguns recursos clássicos como o hipérbato. A sua imaginação manifesta-se em paisagens marcadas por tempestades ou ruínas e na sugestão dos mistérios da religião e da morte. Estes traços predominantes, com especial relevo para as imagens funéreas de efeito fácil e sem grande conteúdo conceptual, estarão na base do Ultrarromantismo, e serão também postos em prática nas narrativas históricas, especialmente em Eurico, o Presbítero.
Em 1839, é nomeado por D. Fernando bibliotecário-mor das Reais Bibliotecas das Necessidades e da Ajuda. Nesta altura, entrega-se a um sistemático trabalho de pesquisa, influenciado pelos historiadores franceses Thierry e Guizot, de que resulta a publicação, em 1842, na Revista Universal Lisbonense, das “Cartas sobre a História de Portugal”. Estas constituem o ponto de partida para a História de Portugal, cujo primeiro volume sai em 1846 (os três seguintes em 1847, 1849 e 1853) e origina uma acesa polémica com o clero porque nele é posto em causa o “milagre de Ourique”; os textos desta polémica estão reunidos nos opúsculos Eu e o Clero e Solemnia Verba, publicados em 1850. É encarregado pela Academia Real das Ciências de recolher documentos antigos para a coletânea Portugaliae Monumenta Historica e, por isso, percorre várias regiões do país. Dessas viagens nasce Cenas de um Ano da Minha Vida e Apontamentos de Viagem (1853-1854). O contacto direto com a realidade nacional reforça a sua convicção de que o país necessitava de reformas a vários níveis: educativo, administrativo e económico.
Em termos políticos, Herculano identifica-se com a ala esquerda do Partido Cartista. É eleito deputado pelo Porto em 1840, mas, após ter apresentado um plano de ensino popular que não chega a ser posto em prática, desilude-se com a atividade parlamentar e abandona o cargo em 1841. Adere, então, à moderada Constituição de 1838, desaprova a restauração da Carta por Costa Cabral e dedica-se à literatura e à pesquisa. Mais tarde, depois do golpe da Regeneração, o escritor abandona a neutralidade política e colabora na formação do novo governo. No entanto, acaba por se opor ao ministério de Rodrigo da Fonseca Magalhães e Fontes Pereira de Melo. Funda os jornais O País (1851) e O Português (1853), onde põe em prática uma intensa atividade polémica contra o progresso meramente material preconizado pelo referido ministério. Entre 1854 e 1859, publica os três volumes de História da Origem e do Estabelecimento da Inquisição em Portugal. É um dos fundadores do Partido Progressista Histórico, em 1856. No ano seguinte, ataca vigorosamente a Concordata com a Santa Sé. Participa na redação do primeiro Código Civil Português (1860-1865), tendo proposto a introdução do casamento civil a par do religioso, o que originou uma nova polémica com o clero, que se pode ler no volume Estudos sobre o Casamento Civil (1866), logo colocado no Index romano. Desiludido com a vida política, retira-se para uma quinta em Vale de Lobos, arredores de Santarém, em 1867, comprada com o dinheiro ganho com a publicação dos seus livros. Aí dedica-se à vida agrícola e à produção de azeite, juntamente com D. Mariana Hermínia Meira, namorada da juventude, com quem casara em 1866, e que esperara pela realização da sua carreira literária. Neste seu exílio voluntário, Herculano continua a trabalhar nos Portugaliae Monumenta Historica, publica o primeiro volume dos Opúsculos (1872), intervém em polémicas, como a nascida da proibição das Conferências do Casino (1871) e a respeitante à emigração (1874), reúne os materiais para o quinto volume da História de Portugal e mantém uma abundante correspondência com personalidades literárias e políticas. Morre de pneumonia, depois de uma viagem a Lisboa, em 13 de setembro de 1877.
Poeta, jornalista, político, polemista e historiador, é todavia como romancista que Herculano será mais lembrado pelas gerações vindouras. As suas narrativas históricas assinalam o nascimento de um novo género na literatura portuguesa " o romance histórico ", no qual o autor pode pôr em prática as qualidades de investigador do passado, principalmente da Idade Média, e os seus propósitos pedagógicos.
Em 24 de março de 1838, publica n’ O Panorama a primeira narrativa histórica, O Castelo de Faria, e em novembro Mestre Gil. Estas e outras composições, publicadas também n’ A Ilustração, foram reunidas em dois volumes em 1851, sob o título de Lendas e Narrativas. Os romances O Bobo (vindo a público n’ O Panorama em 1843 e editado em volume em 1878), Eurico, o Presbítero (1844) e O Monge de Cister (1848), escritos à semelhança das obras do escocês Walter Scott, considerado por Herculano como “modelo e desesperação de todos os romancistas”, alcançaram um sucesso imediato e desencadearam uma onda de imitações que transformou o romance histórico em moda literária nacional em meados de oitocentos.
Nestas obras, o romancista cria cenários lúgubres e de dimensões trágicas, nos quais se movimentam românticos heróis atormentados por paixões e mulheres-anjo predestinadas para o sofrimento, sobrepostos a um pano de fundo histórico minuciosamente reconstituído. Eurico, forçado a abdicar de um amor impossível por Hermengarda, professa e transforma-se num sacerdote solitário, num poeta inspirado pelo amor e pela religião, e num “cavaleiro negro” misterioso e heroico, tingido por certas cores terríveis do romance negro. Dá voz à dor em cenários de imensidão e à luz da lua, recitando longos poemas marcados por uma grandiloquência solene, compondo hinos religiosos que ecoam nos templos da Espanha visigótica, desafiando a superioridade dos adversários para salvar a donzela amada, e, finalmente, entregando-se à morte num combate desigual, única solução para o dilema que lhe dilacera a alma: ama Hermengarda, mas não pode trair os votos que o prendem a Deus. Já Vasco, frade maldito de O Monge de Cister, cujo sacerdócio não abranda o ódio que o consome, leva o seu desejo de vingança ao extremo de negar a confissão ao homem que seduzira a irmã inocente. N’ O Bobo, o protagonista, Egas, vê a amada sacrificar-se para o libertar, mas perde-a para sempre quando assassina o rival com quem ela deveria casar.
Estes amores desesperados e estas personagens vítimas de uma fatalidade que as ultrapassa, são colocados em épocas remotas que o autor empreende retratar. Assim, ganha especial relevo a reconstituição do ambiente, através da acumulação de descrições de edifícios, monumentos, ou indumentárias, referências a costumes e práticas, a formas de convivência social, e até à linguagem, numa tentativa de criar a ilusão de total fidelidade a uma realidade pretérita. No entanto, e apesar desta rigorosa encenação, nem sempre Herculano consegue esconder as suas convicções. Por exemplo, a defesa do município, apresentada em O Monge de Cister, tem por finalidade convencer os leitores do século XIX das virtudes desse sistema administrativo, e não pode ser vista apenas como uma referência ao sistema em uso no fim do século XIV. Neste, como noutros pontos da sua obra, os caminhos do historiador e do romancista cruzam-se...
Com O Pároco de Aldeia, publicado n’ O Panorama em 1844 e em volume em 1851, Herculano cria o romance campesino, que servirá de modelo a Júlio Dinis, e apresenta como protagonista a figura do padre bondoso, protetor dos fracos e amado pelas crianças. Nesta obra, apresenta-se um retrato da vida rural marcado pela serenidade, e cujo ritmo é estabelecido pelo toque do sino e pelos rituais da igreja. Faz-se, assim, a apologia da superioridade do Catolicismo face ao Protestantismo, graças aos rituais e símbolos visíveis que guiam a crença popular e contribuem para a manutenção da moralidade pública.
Herculano herói do Liberalismo, guardião da
moral e promotor da ideologia romântica nacional, é indubitavelmente, ao lado
de Almeida Garrett, a figura fundadora do Romantismo português e a
personalidade que de forma mais completa o representa.
Bibliografia
1. Obras de Alexandre Herculano
1834 – “Qual é o Estado da Nossa Literatura?” (Repositório Literário, 1-2)
1835 – “Poesia. Imitação – Belo – Unidade” (Repositório Literário, 9-11)
1836 – A Voz do Profeta (1ª série)
1837 – A Voz do Profeta (2ª série)
Crónica de El-Rei Sebastião
1838 – A Harpa do Crente
O Fronteiro de África
1842 – Cartas sobre a História de Portugal (Revista Universal Lisbonense)
Uma Sentença sobre Bens e Reguengos
1843 – O Bobo (n’O Panorama)
1844 – O Pároco de Aldeia
Eurico, o Presbítero
1845 – O Alcaide de Santarém
O Galego (vida, Ditos e Feitos de Lázaro Tomé)
1846 – História de Portugal (1º vol.)1847 – História de Portugal (2º vol.)
1848 – O Monge de Cister
1849 – História de Portugal (3º vol.)
1850 – Eu e o Clero e Solemnia Verba
Poesias
1851 – Lendas e Narrativas
A Ciência Arábico-académica
1853 – História de Portugal (4º vol.)1854 – História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal (1º vol.)
1855 – História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal (2º vol.)
1857 – Do Estado dos Arquivos Eclesiásticos do Reino
A Reacção Ultramontana em Portugal
1858 – Do Estado das Classes Servas da Península
Ao Partido Liberal Português, a Associação Promotora da Educação do Sexo Feminino
1860 – Análise da Sentença Nada no Juízo da 1ª Instância da Vila de Santarém
As Heranças e os Institutos Pios
1873 – Opúsculos (tomos I e II)
1875 – Da Existência ou Não do Feudalismo em Portugal
1876 – Opúsculos (tomo III)
1878 – O Bobo (edição póstuma em
volume).
2. Bibliografia Passiva (sumária)
ABREU, Maria Fernanda de, “Del romance medieval hacia el cuento romántico: A Dama Pé-de-Cabra de Alexandre Herculano”, in Homenagem a Ernesto Guerra da Cal, Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1997, pp. 301-315.
AA.VV., Alexandre Herculano. Ciclo de Conferências Comemorativas do I Centenário da sua Morte. 1877-1977, Porto, Biblioteca Pública Municipal do Porto, 1979.
BAPTISTA, Jacinto, Alexandre Herculano Jornalista, Lisboa, Bertrand, 1977.
BEIRANTE, Cândido, Alexandre Herculano. As Faces do Poliedro, Lisboa, Vega, 1991.
BELCHIOR, Maria de Lourdes, «Herculano “Trovador do Exílio”», in Os Homens e os Livros II. Séculos XIX e XX, Lisboa, Verbo, 1980, pp. 201-215.
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