Maria Lamas
Maria Lamas, por Maria Antónia Fiadeiro
Maria Lamas (Torres Novas, 1893 - Lisboa, 1983)
Nasceu no fim do século XIX (1893), numa pacata vila da província portuguesa do Ribatejo, em Torres Novas, e viveu quase todo o século XX. Morreu em Lisboa, em 1983, com noventa anos por fazer. Filha de pai republicano e maçon, que a orientou nas leituras, e de mãe católica e muito piedosa, teve duas irmãs e um irmão mais velho, Vassalo e Silva, que viria a ser o último Governador da Índia Portuguesa.
Militou civicamente e convictamente por uma plena igualdade das mulheres, igualdade que defendia baseada na educação e na independência económica, através do exercício de uma profissão ou de um ofício. Quando o século XX chegou, encontrou-a num colégio de freiras espanholas, as Teresianas, que lhe deixaram marcas perenes do cristianismo universal e misticismo erudito. Muito nova, casa por amor, (1911) com um jovem oficial do exército republicano (Teófilo Ribeiro da Fonseca). Grávida, não hesita em acompanhar o marido, em missão num presídio militar, no inóspito interior de Angola. Regressa a Portugal (1914) porém, sozinha, com uma filha pela mão e já de novo grávida, disposta ao divórcio e a lutar pela vida, o que fez desalmadamente.
Foi uma das primeiras mulheres jornalistas profissionais, iniciando-se na Agência Americana de Notícias pela mão da jornalista Virgínia Quaresma, com salário, horário e hierarquia. Volta a casar (1921) com um colega de profissão, monárquico (Alfredo da Cunha Lamas), num casamento algo turbulento que dura pouco, embora fique para sempre com o apelido Lamas, e com uma dedicadíssima filha (1922-2007), Maria Cândida Caeiro.
O bem e a verdade. A igualdade e a felicidade. A liberdade e a justiça. A fraternidade. São valores pelos quais luta, abnegadamente. Inclui a seriedade e a sinceridade. Fala insistentemente no direito à felicidade. Quer uma sociedade mais justa, uma democracia plena, “uma política humana”. Tem fé no progresso e na humanidade. Foi uma humanista convicta. A luta pela dignificação e a emancipação da mulher, causa que sempre perseguiu, em várias frentes, inscreve-a na luta geral pelos direitos humanos. Fez da exigência intelectual uma característica específica do feminismo português, consagrada explicitamente no Programa do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (CNMP), divulgado em 1946; era, então, Presidente eleita dessa Associação Feminista, criada em 1914, pela médica obstetra Adelaide Cabete. Integrou esta Associação com cargos de coordenação, desde 1936.
Escreveu poemas (Os Humildes, 1923), crónicas, novelas, folhetins, reportagens, (As Mulheres do Meu País, 1947-1950), recensões, romances (Para Além do Amor, 1935; Caminho Luminoso, 1927; Ilha Verde, 1938), textos para crianças, textos para adolescentes (é imensa a sua produção infantojuvenil) e textos sobre as mulheres, “escravas milenares de erros milenares”. Tem textos autobiográficos, tinha consciência biográfica e foi, também, uma memorialista (Revista das 4 Estações, primavera, “O Despertar de Sílvia”, 1949). Conheceu e conviveu com a generalidade das feministas portuguesas de então, nomeadamente, Adelaide Cabete, Sara Beirão, Elina Guimarães, Maria Emília Sousa e Costa,Virgínia de Castro e Almeida, Deolinda Quartim e tantas outras. Era amiga de Branca de Gonta Colaço e Manuela de Azevedo.
Traduziu, entre outras obras, As Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar, Francisco Goya, de Eric Porter, A vida Apaixonante de Dostoiewsky, de Ahanassidis, O Feiticeiro de Oz, de L.Baum L.Frank.
No jornalismo, dirigiu a Revista Modas e Bordados (1928-1947), um Suplemento semanal do Jornal O Século, ali no Bairro Alto de Lisboa, então, o bairro da Imprensa, durante quase 20 anos, e onde entrou pela mão do escritor e jornalista Ferreira de Castro, Exerceu o jornalismo na Revista Civilização, dirigida por Ferreira de Castro, onde criou também o “Reino dos Miúdos”, destinada ao público infantil. No Modas, regista alguns feitos de excelência e de exceção, memoráveis, embora nunca tenham passado para a História da Cultura ou da Imprensa, até surgirem os Estudos sobre as Mulheres:
– a realização de uma grande Exposição da Obra Feminina Antiga e Moderna…(1930) que ocupou, durante dois meses, onze salas, de O Século constituindo o primeiro inventário da criação e criatividade feminina, numa iniciativa nunca igualada(há catálogo);
– a realização de uma grande Exposição de Livros Escritos por Mulheres (1947), três mil livros de mil e quatrocentas mulheres autoras de trinta países do mundo, que encheram o grande Salão de Belas-Artes. Uma exposição breve (durou apenas uma semana), dada a repressão da ditadura. Uma iniciativa inédita e internacional (há catálogo);
– a realização de uma monumental reportagem sobre As Mulheres do Meu País (1950) publicada em fascículos, que representa um trabalho de campo de perto de dois anos, pelo País, de Norte a Sul, um livro-álbum impar, de luxo, durante mais de 50 anos, nunca reeditado.
Em 1952 publica dois tomos (mais 600 páginas cada) sobre A Mulher no Mundo, ainda hoje uma obra de referência, em que realiza a história comparada do estado dos feminismos em todo o mundo, através de exaustiva consulta historiográfica, recenseando centenas de obras.
Outros feitos jornalísticos não menores: um jornalzinho para as crianças (O Pintainho, 1925); uma breve e inovadora revista para as jovens portuguesas (A Joaninha, 1936) com um correio de leitoras, que transitou para a Revista, um famoso correio, duradouro e prolongado, o “Correio da Tia Filomena” (1937-1947) e outras, tantas outras realizações de fôlego e de vulto, com todo o encanto e inteligência que punha nas iniciativas que tomava. Em 1934 recebeu a Ordem Militar de Santiago de Espada.
A sua atividade libertadora de consciências e de identidade e de intervenção cívica era muita. Comunga ideais e atividades com corajosos portugueses oposicionistas. Nos anos 40, adere ao Movimento Democrático Nacional (MDN) e ao Movimento de Unidade Democrática (MUD). Participa ativamente na Campanha do General Norton de Matos à Presidência intervindo sempre também em outras campanhas eleitorais. As suas atividades eram consideradas subversivas e o seu trabalho junto das mulheres foi considerado dispensável. Perseguida pela ditadura, presa, por três vezes, parte para o exílio, por duas vezes, em Paris,”uma cidade onde andar na rua é como andar numa universidade”. No exílio, o mais longo durou de junho de 1962 a dezembro de 1969, muito depois dos 60 anos de idade, conhece um período intenso e solidário de cidadania democrática internacional, em tempos de Guerra Fria. Acolhia, participava e intervinha na generalidade das atividades da Oposição Portuguesa à Ditadura, tendo conhecido os maiores vultos políticos nacionais e internacionais do século XX.
Nos anos 50 e 60, correu o mundo em Congressos, Seminários e Conferências pelos Direitos das Mulheres e pela Paz cuja Comissão Nacional dirigiu, numa militância incansável, normalmente com estatuto de delegada e dirigente. Conheceu, então, só então, muitos países, muitos povos muitas culturas. Em Paris, viveu sempre, em contacto com o mundo, num pequeno e modestíssimo quarto de um simpático Hotel, em pleno Quartier Latin, o bairro dos estudantes, como se fosse um deles. Da sua janela, assistiu, empolgada, a muitas manifestações do maio de 68.
De regresso a Portugal, em 1969, será alvo de uma homenagem, promovida pelo jornal República, na Casa da Imprensa. A primeira homenagem promovida pelos seus pares foi em 1947, na Casa do Alentejo, quando sai do Modas e Bordados e fica sem emprego à vie, e sem casa própria. Adere, pela mão de sua filha Cândida, aos 80 anos, após o 25 abril de 74, ao Partido Comunista Português. Foi eleita Presidente Honorária do Movimento Democrático das Mulheres. Foi Diretora Honorária da Revista Modas e Bordados, e, mais tarde, da Revista Mulheres. Em 1980 é agraciada com o Grau de Oficial da Ordem da Liberdade. Em 1982 é homenageada pela Assembleia da República. Em 1983 recebe a Medalha Eugénie Cotton, da Fédération Démocratique Internacionale dês Femmes (FDIM).
Como herança intelectual deixou muita obra feita e um nome respeitado e prestigiado na História do Portugal Contemporâneo e na História das Mulheres que começou a fazer e a escrever, sendo na área, também, uma investigadora pioneira. Na História da Imprensa Feminina tem lugar cativo e de relevo, também como repórter fotográfica, embora pontualmente. Nunca se declarou feminista, embora o fosse.
Maria Lamas, um nome de mulher, no mundo dos homens, uma investigadora autodidata, na história das Mulheres do Portugal contemporâneo. Uma mulher que fez história, foi uma combatente e uma lutadora resistente, que entrou na História como cidadã e que escreveu História como autora. Uma portuguesa, notável, uma cidadã europeia do século XX.