Português europeu contemporâneo:
mudanças ou desvios?
Com um intervalo de cem anos, os mesmos fenómenos de uso da língua nos jornais foram alvo de comentário enquanto afastamento em relação à norma do português.
1890 - 1892

1. Dizem que, entre os elementos de uma nacionalidade qualquer, occupa a lingua, um dos primeiros logares; e se da decadencia da lingua é licito inferir a decadencia da respectiva nacionalidade, Portugal tem decaído muito.
2. Quantos mais jornaes leio, mais me convenço de que Portugal vae à vela, pelo desamor e pelos desacatos com que a imprensa está tratando a nossa gloriosa língua.
3. Não registo erros de imprensa, nem ainda um descuido, que ninguem perfilha e que é portanto inoffensivo; registo as formas de linguagem erróneas que à força de se terem repetido inconscientemente, chegaram a adquirir fóros de toleradas e que não podem nem devem ter curso em jornaes que toda a gente supõe discretamente redigidos.
4. [A sintaxe é o meu fito principal]: construcções de frases e periodos, pelo que toca a solecismos e à regencia, concordancia e uso das palavras.

Um jornal de grande formato e de grande pêso diz hoje: Francamente, irmãs, em boa verdade vos diremos, que desatinadas andasteis...

Por um caso dêstes, ainda há pouco o Correio da Manhan se riu de umas frases do deputado Arriaga. Andasteis, - deve sabel?o toda a gente, - não é coisa que se diga; mas diz-se muita vez, porque há gente fina que não distingue do preterito perfeito do indicativo o imperfeito do conjunctivo. [...]
A confusão está nisto: como andasses é singular, e andásseis é plural, há quem imagine que andasteis é plural, e andastes singular.
A boa linguagem é esta: andaste tu, andastes vós; andasses tu, andasseis vós [...].

O Portuguez 25/10/1890

António Cândido de FIGUEIREDO, Líções Práticas de Linguagem Portugueza. Cartas de Caturra Jr. à redação do Portuguez, vol. I. Lisboa, Imprensa Minerva, 1891.
João PERES e Telmo MÓIA, Áreas Críticas da Língua Portuguesa. Lisboa, Editorial Caminho, 1995.

Ausência de preposição

[Um] jornal affirma:
Não ha duvida que o ministro tem essa faculdade.

Para a outra vez diga assim que não diz mal:
- Não há duvida
de que...

O Portuguez 29/11/1890

Passivas

Um jornal, de grande auctoridade financeira, diz: O thesouro tem uma divida representada em títulos, que são papeis, titulos de que se paga juros, juros que crescem, porque as emissões crescem tambem. E um cronista laureado observa: Se elle soubesse quantas porções de vida se consomme, quanta existencia se gasta para manter n'essa folha impressa que lhe custou uma moeda de nobre...

Paga-se juros, consome-se porções de vida, - são fórmas impessoais, de cunho genuinamente francez, têm um ou outro raro grammatico a abonal?as, mas as formas incontestavelmente portuguezas são estas: pagam-se juros, consomem-se porções de vida; fórmas que correspondem a estroutras apassivadas: são pagos juros, são consumidas porções.
Um francez pode dizer:
on lit beaucoup de poèmes; um portuguez dirá: lêm-se muitos poemas, e não - lê-se muitos poemas.

O Portuguez 8/11/1890

1986-1994

Todas as variantes têm idêntico interesse e dignidade enquanto objectos de estudo, uma vez que todas elas são sistemas organizados por uma gramática. Assim, tanto é uma variante do português com interesse científico, por exemplo, aquela em que sistematicamente se flexionam as formas de segunda pessoa do singular do pretérito perfeito simples por analogia com as do presente do indicativo - tu fostes, estivestes, dançastes - como aquela em que essa analogia não intervém.

1. Uma língua de vasta expansão como o português não constitui uma entidade uniforme, antes se desdobrando numa multiplicidade de variantes.
2. As normas linguísticas vão sendo lentamente moldadas pelas comunidades, não pelos especialistas da linguagem.
3. [No entanto] a todo o momento deparamos com realizações linguísticas - orais e escritas - que possivelmente nunca receberão de uma comunidade linguística o estatuto de construções regulares.
4. [Julgamos identificar] seis áreas da língua que manifestam sintomas de uma
«crise», quer porque nelas se verificam movimentos de ruptura em geral prenunciadores de mutações de norma - quer porque muito facilmente nelas se insinua o puro desvio, a sugerir a existência de dificuldades (novas ou não) por parte dos falantes.
5. As áreas críticas seleccionadas são: estruturas argumentais, construções passivas, construções de elevação, orações relativas, construções de coordenação e concordâncias.
6. O material linguístico escolhido para a análise é constituído por textos jornalísticos produzidos entre 1986 e 1994.


Problemas relativos a preposições argumentais · Supressão de preposições de argumentos

«Quase ninguém duvida que o principal conflito no Médio Oriente é uma disputa territorial entre dois povos: os israelitas e os palestinianos.»

O verbo duvidar [...] é cada vez mais utilizado sem preposição no seu argumento oracional (tal como gostar, precisar e necessitar).

Versão alternativa
«Quase ninguém duvida de que o principal conflito no Médio Oriente é uma disputa territorial entre dois povos: os israelitas e os palestinianos.»

Construções passivas

Uma primeira distinção relevante [...] é a distinção entre o clítico se apassivante e o pronome clítico
se impessoal. [...] O clítico se apassivante acompanha sempre formas de verbos transitivos, flexionados no singular ou no plural consoante o número gramatical do argumento com que concordam [...]. O clítico se impessoal é uma expressão que indica a existência de um sujeito indeterminado numa frase. [...] A propósito desta questão, importa notar que alguns puristas apenas admitem as construções em que o clítico se impessoal se combina com verbos intransitivos, rejeitando, pois, frases em que o verbo é transitivo e tem um segundo argumento não preposicionado com que não concorda, como acontece nas seguintes frases:

                                                            
Ouve-se ruídos durante toda a noite.
                                                                 Recitou-se versos de Pessoa.
                                                                          Vende-se casas
.

Como alternativa a estas estruturas propõem-se construções passivas de clítico em que o verbo surge na forma plural:

                                                          
Ouviram-se ruídos durante toda a noite.
                                                              Recitaram-se versos de Pessoa.
                                                                        Vendem-se casas.

Na nossa opinião, ambas as construções são aceitáveis, embora admitamos que se possa preferir uma ou outra por razões estilísticas.
© Instituto Camões, 2001