Cosmógrafo-mor
De acordo com o estipulado pelo Regimento de 1592, competia ao cosmógrafo-mor examinar todos os que pretendessem vir a fazer cartas de marear e instrumentos náuticos, para o que só ficavam habilitados depois de passada a respectiva certidão; verificar e assinar a correcção das cartas, globos e outros instrumentos náuticos, que os fabricantes lhe deviam apresentar no prazo de dez dias, uma vez terminados; servir de perito nas contendas sobre demarcações de terras e mares, descobertos e a descobrir; leccionar uma aula de matemática para pilotos, sotapilotos, mestres, contramestres e guardiães, e ainda gente nobre que quisesse assistir (para o que o regimento estipula as matérias a ensinar); certificar a capacidade profissional dos mesmos oficiais através de um exame obrigatório; e, além de outras obrigações de menor importância, devia ainda fazer a matrícula dos referidos oficiais num livro que se guardaria no Armazém da Índia, distribuindo-os depois pelas armadas, de acordo com a respectiva antiguidade, de modo a que servissem equitativamente nas viagens a organizar.
O cosmógrafo-mor Pedro Nunes (1502-1578)
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Segundo Teixeira da Mota, que publicou e estudou este regimento, os exames realizados por Pedro Nunes correspondem ao que vem estipulado no documento em apreço, que logo na abertura alude ao regimento de 1559, presumivelmente o primeiro a regular esta função e respectivas atribuições, e que se tratava então de actualizar. Nomeado cosmógrafo-mor em 1547, Pedro Nunes, o primeiro detentor do cargo, terá sido provavelmente o autor do texto de 1559 (que não se conhece hoje em dia). É porém possível que o ensino dos pilotos tivesse começado antes, já que na abertura do Tratado em defensão da carta de marear Nunes faz uma referência explícita às reacções do homens do mar face às suas propostas de resolução de alguns dos problemas da arte de navegar da época: E sou tão escrupuloso em misturar com regras vulgares desta arte [de navegar] termos e pontos de ciência, de que os pilotos tanto se riem& . (Obras, I, p. 120).
É portanto possível que ao ser nomeado cosmógrafo do reino em 1529, Pedro Nunes já visse serem-lhe cometidas algumas responsabilidades ao nível da preparação teórica dos pilotos, e, assim, tanto a nomeação de 1547 como a redacção do regimento de 1559 poderão ser entendidas sobretudo como um reforço de atribuições.
Seja como for, o certo é que o desempenho destas funções esteve longe de corresponder a um esforço sistemático de qualificação e regulação do exercício da pilotagem e da fábrica de cartas e instrumentos. Conhecem-se apenas três cédulas de exames feitos por Pedro Nunes, número ínfimo ao pé do quantitativo de profissionais que exerciam efectivamente.
O lugar esteve vago desde o passamento de Nunes, em 1578, até 1582, ano da nomeação do seu sucessor, Tomás de Orta. Apesar de ter feito quatro exames, isso não significa que o novo titular tenha tido qualquer acção de relevo; na verdade não só não reformou o regimento, como era suposto, como se deve entender que o seu apontamento prefigou mais uma recompensa régia por serviços prestados anteriormente (enquanto físico real, isto é, médico) que o desejo de promover os estudos de náutica.
Ao mesmo tempo que nomeava Orta para cosmógrafo-mor de Portugal, Filipe II levou para Madrid um cosmógrafo altamente qualificado, João Baptista Lavanha, que foi ler matemática na recém criada academia da capital de Castela. A escolha de um reformado - por assim dizer - para Lisboa, e de um cosmógrafo capaz e na plena pujança da sua actividade, como Lavanha, para Madrid, indicia bem a prioridade do monarca.
Incapaz para o excercício do cargo dada a sua avançada idade, Orta foi substituído na prática por Lavanha em 1591 (expressamente retornado de Madrid para o efeito), e de facto em 1596, após a sua morte. A autoria da revisão do regimento é pois de Lavanha, com quem a certificação dos profissionais conheceu um novo impulso, atestado pelos quase oitenta exames que realizou.
Nos seus impedimentos, e ao contrário do que sucedeu com Nunes, Lavanha foi substituído interinamente duas vezes por Manuel de Figueiredo (1608) e Valentim de Sá (1623). Defunto em 1624, sucedeu-lhe D. Manuel de Menezes em 1625, o único cosmógrafo-mor com real conhecimento e experiência da navegação prática, e a este António de Mariz Carneiro, em 1631, por alvará de Filipe IV (e com novo alvará de nomeação de D. João I, dez anos volvidos).
O sexto detentor do cargo foi uma das mais importantes figuras do meio técnico português do século XVII, Luís Serrão Pimentel, que já exercia em 1644, data em que é nomeado oficialmente. Seguiu-se-lhe o filho, Manuel Pimentel, autor de uma Arte de Navegar de 1699 (mas conhecida pela edição de 1712), que, sem apresentar novidade de monta, revela todavia conhecimento do ofício. O cargo tornou-se depois hereditário e a figura do cosmógrafo-mor perdeu qualquer relevo, vindo a ser extinto quando na posse de um dos Pimentéis.
Francisco Contente Domingues
Bibliografia
DOMINGUES, Francisco Contente, Os Navios do Mar Oceano. Teoria e empiria na arquitectura naval portuguesa dos séculos XVI e XVII, Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, 2004.
MATOS, Rita Cortêz de, António de Mariz Carneiro Cosmógrafo-Mor de Portugal, Diss. de Mestrado, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2002.
MOTA, Avelino Teixeira da, Os Regimentos do Cosmógrafo-Mor de 1559 e 1592 e as Origens do Ensino Náutico em Portugal, Coimbra, JIU-AECA (Sep. LI), 1970.
NUNES, Pedro, Obras, vol. I, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.
PIMENTEL, Manuel, Arte de Navegar, ed. comentada e anotada por Armando Cortesão, Fernanda Aleixo e Luís de Albuquerque, Lisboa, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1969.