Autores e antologia

Vitorino Nemésio

Vitorino Nemésio
Vitorino Nemésio (1901-1978) Foi professor da Faculdade de Letras de Lisboa e ensaísta reputado, mas o seu prestígio na nossa história literária advém-lhe sobretudo do romance açoriano Mau Tempo no Canal, 1944, história de amor e de sinuosidades familiares e sociais, e dos vários livros de poesia que o consagram como um dos grandes líricos do nosso século (O Verbo e a Morte, 1959, Sapateia Açoriana, Andamento Holandês e Outros Poemas, 1976), que equaciona o sentido da existência humana perante os diversos conflitos que a centram: o sagrado e o profano, o saber e a ingenuidade, a cultura e a natureza, o amor excessivo e os desapegos da banalidade quotidiana. Ilha de S. Miguel, Açores «O Futuro Perfeito»A neta explora-me os dentes.Penteia-me como quem carda.Terra da sua experiência,Meu rosto diverte-a, pardaImagem dada à inocência.E tira, tira puxandoCoisas de mim, divertida.Assim me vai transformandoEm tempo de sua vida. O Verbo e a Morte © Instituto Camões, 2001

Vergílio Ferreira

Vergílio Ferreira
Vergílio Ferreira (1916-1996) Notabilizou-se como romancista e ensaísta (Espaço do Invisível, 1965, Invocação ao Meu Corpo, 1969), tendo os seus romances de início sofrido a  influência neorrealista (O Caminho Fica Longe, 1943), para prosseguirem no sentido do existencialismo de Sartre e Heiddeger (Mudança, 1949, Aparição, 1959). Simultaneamente lírico e de libelos violentos em relação à sua contemporaneidade, exerce uma reflexão sobre o tempo, romanesco e existencial, que orienta para a valorização da vida (Alegria Breve, 1965), para o protesto em relação a todas as acomodações políticas e sociais (Signo Sinal, 1979) ou para a perceção da articulação entre os opostos do ser humano no seu decurso (morte/vida, beleza/fealdade, sagrado/profano, criação/destruição), em torno das noções da sua existência e do seu limiar (Até ao Fim, 1987, Em Nome da Terra, 1990). Desenho de Mário Eloy [1900-1951] Estou só - estás só. Não penses. Não fales. És em ti apenas o máximo de ti. Qualquer coisa mais alta do que tu te assumiu e rejeitou como a árvore que se poda para crescer. Que te dá pensares-te o ramo que se suprimiu? A árvore existe e continua para fora da tua acidentalidade suprimida. O que te distingue e oprime é o pensamento que a pedra não tem para se executar como pedra. E as estrelas, e os animais. Funda aí a tua grandeza se quiseres, mas que reconheças e aceites a grandeza que te excede. Para Sempre © Instituto Camões, 2001

Sophia de Mello Breyner Andresen

Sophia de Mello Breyner Andresen
Em Arte Poética II, Sophia de Mello Breyner Andresen (n. 1919) escreve: A poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o poema não fala duma vida ideal mas duma vida concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do orégão. Para Sophia, a poesia é, pois, encontro do ser com o concreto do mundo, e repare-se como, explicitando o que para si é a poesia, a autora insensivelmente já está a fazer poesia, comunicando a sua perceção das coisas através da transfiguração da palavra poética.Publica livros desde 1944 (também prosa de ficção, e livros para crianças como A Menina do Mar e A Fada Oriana, 1958), e um dos seus grandes temas é o mar, com a luminosidade de conhecimento solar e a regularidade de reconstrução do movimento, ou respiração vital, que ele comunica, ou mesmo na epifania do mundo. Em Dia do Mar (1947), «Navegação»: Distância da distância derivadaAparição do mundo: a terra escorrePelos olhos que a vêem revelada.E atrás um outro longe imenso morre. Muito sensível às implicações culturais da política e do sentimento da liberdade, exprime por vezes a pequenez dos ambientes que a opressão social sufoca. Em Livro Sexto (1962), «Exílio»: Quando a pátria que temos não a temosPerdida por silêncio e por renúnciaAté a voz do mar se torna exílioE a luz que nos rodeia é como grades. © Instituto Camões, 2001

Urbano Tavares Rodrigues

Urbano Tavares Rodrigues
Urbano Tavares Rodrigues (1923) escreve regularmente desde os anos cinquenta, durante os quais se revelou como contista talentoso (Uma Pedrada no Charco, 1958) e como romancista recetivo ao estado da sociedade contemporânea e à evolução da escrita literária (ex. Bastardos do Sol, 1959, e A Hora da Incerteza, 1995). O amor, a intervenção social e política, a cidade de Lisboa e a região do Alentejo são os seus temas dominantes, cuja natureza e circunstância persegue com insistência e insatisfação: Almoço (a Adriana está a reaprender as comidas alentejanas) uma fabulosa sopa de beldroegas com queijo e ovo escalfado. É a minha infância que regressa, quase intacta, nesse sabor. Os cílios da minha irmã a baterem muito, interrogativos e indignados, quando lhe roubo do prato, à sorrelfa, o bocado de queijo de ovelha, delicioso, que de direito, direitíssimo, lhe cabia. Já está com lágrimas nos doces olhos castanhos e eu, repeso, de colher no ar, a querer-lhe restituir o objecto da sua mágoa.A Hora da Incerteza © Instituto Camões, 2001

Raul Brandão

Raul Brandão
Raul Brandão (1867-1930) Esboço da Casa do Alto É o grande modernista português na prosa de ficção, integrando uma dimensão simbolista de tentativa de transposição de uma realidade aparente e decetiva para obter uma transcendência ou absoluto que a escrita tacteantemente formula. Ficcionista de personagens patéticas e grotescas na incapacidade de delinearem o seu sonho ou infames no modo de o trair (A Farsa, 1903, Os Pobres, 1906), é no romance Húmus, 1917, que melhor explora a dimensão larvar da pequenez humana, encenando a tragédia da luta da «vila» pelo seu «sonho», e utilizando processos de desconjuntamento do tempo narrativo que antecipam o trabalho discursivo da ficção de hoje. Na mesma linha compôs várias peças de teatro. Ouço sempre o mesmo ruído de morte que devagar rói e persiste...Uma vila encardida - ruas desertas - pátios de lajes soerguidas pelo único esforço da erva - o castelo - restos intactos de muralha que não têm serventia. Uma escada encravada nos alvéolos das paredes não conduz a nenhures. Só uma figueira brava conseguiu meter-se nos interstícios das pedras e delas extrai suco e vida. (... ) Sobre isto um tom denegrido e uniforme: a humidade entranhou-se na pedra, o sol entranhou-se na humidade. (... )Silêncio. (...) Ouço sempre o trabalho persistente do caruncho que rói há séculos na madeira e nas almas. Húmus © Instituto Camões, 2001