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O aluno de Madame Curie
Mário Augusto da Silva foi uma personalidade de estatura invulgar. Aluno brilhante, investigador que privou com Madame Curie e outros grandes cientistas deste século, catedrático aos 30 anos, grande pedagogo, haveria de ser afastado da Universidade de Coimbra pelo governo de Salazar e impedido de contribuir para o desenvolvimento da ciência portuguesa. No fim da vida, assistiu ainda à queda do fascismo e voltou a prestar os seus serviços ao país. Alguns dos seus projectos, nomeadamente o Museu de Física da Universidade e o Museu Nacional da Ciência e da Técnica, continuam hoje a ser construídos.
Mário Augusto da Silva nasceu em Coimbra, em 7 de Janeiro de 1901, poucos dias passados sobre o início do século. Proveniente de uma família republicana que acarinhava a educação, licenciou-se na Universidade de Coimbra em 1922. Tanto no liceu como na universidade obteve a classificação final de 19 valores. Ainda estudante, foi nomeado assistente da universidade. Pouco depois, em 1925, partiu para Paris, onde ambicionava prosseguir os seus estudos e trabalhar no Instituto do Rádio, criado e dirigido pela já lendária Madame Curie (1867-1934). Na altura, esse era um dos centros de investigação mais activos e prestigiados do mundo. Marie Curie, nascida na Polónia com o apelido Sklodowska, tinha já recebido o Nobel da Física em 1903, juntamente com Henri Becquerel e Pierre Curie, seu marido. Tinha também recebido o Nobel da Química em 1911, sendo a primeira pessoa a contar duas vezes com essa distinção.
Ao ambicionar prosseguir os seus estudos com Marie Curie, Mário Silva lançava-se numa aventura que espíritos menos fortes teriam receado. Chegado a Paris, o jovem físico foi apoiado por Afonso Costa, na altura exilado na capital francesa, e apresentado a Paul Langevin e a Marie Curie. Apesar de ter passado o prazo de matrícula para os estudos de pós-graduação, a famosa cientista acolheu-o, tornando-o seu assistente no laboratório. Em diversos escritos que nos deixou, Mário Silva fala com justificado entusiasmo dos tempos em que acompanhou a intensa e extraordinária investigação desenvolvida por Madame Curie e pelos seus colaboradores.
De início, o físico português sentiu as insuficiências da sua preparação científica e seguiu as lições de física e matemática então dadas na Sorbonne e no Collège de France. Estudou com os célebres matemáticos Édouard Goursat (1858-1936), Jacques Hadamard (1865-1963) e Émile Borel (1871-1956) e com os famosos físicos Paul Langevin (1872-1946) e Louis de Broglie (1892-1987). Lamentava-se muito em especial do atraso do curso que tinha seguido em Coimbra, onde nem sequer a Teoria da Relatividade tinha sido referida. O seu esforço deu frutos, e Mário Silva viria a realizar vários trabalhos de investigação e a publicar os seus resultados. Em 1928 concluiu o doutoramento, tendo a honra de ter no júri, além da própria Madame Curie, o físico Jean Perrin (1870-1942), que havia sido galardoado com o Nobel da Física em 1926 pela sua confirmação experimental da hipótese atómica.
Terminado o seu doutoramento, Mário Silva foi convidado a continuar em Paris, tendo Marie Curie insistido em atrasar o seu regresso a Coimbra, de forma a poder integrar-se em vários projectos de investigação em curso. Passados muitos anos, o físico português retrataria assim o seu dilema: «De Coimbra começaram a exigir [ ] o meu imediato regresso. [ ] E para quê? - santo Deus! Para dar aulas na velha universidade Conformei-me e parti.»
Mário Silva sabia que estava a deixar um dos centros de investigação mais activos que a história até hoje conheceu para regressar a uma universidade envelhecida. Percebia que poderia dar um contributo muito maior à ciência portuguesa se continuasse o seu treino científico em Paris e viesse posteriormente a estabelecer no seu país uma colaboração internacional. Mas decidiu regressar. Não sabia ainda na altura que o fascismo se iria estabelecer por muito tempo em Portugal e liquidar dramaticamente a sua carreira de investigador e professor.
Em Coimbra, Mário Silva dedicou-se com entusiasmo a constituir um centro de investigação em radioactividade, o Instituto do Rádio da Universidade de Coimbra. O seu projecto iniciou-se e foi instalado algum equipamento mas, no dizer do próprio físico, «todos estes esforços se quebraram perante uma inexplicável e odienta teimosia, invejosamente desenvolvida na sombra». O instituto nunca foi oficializado, as suas portas fecharam e, no fim dos anos 30, um tremor de terra destruiu parte fundamental do equipamento existente. O projecto morreu.
Entretanto, a situação política nacional e internacional agravava-se. A guerra iniciou-se e passaram por Coimbra alguns físicos conhecidos de Mário Silva, que os tentou integrar na universidade. Apesar dos benefícios extraordinários que daí poderiam advir para a ciência portuguesa, esses cientistas de craveira internacional não foram acolhidos. Tiveram de partir para outros países, onde uma política mais aberta os admitiu em universidades e centros de investigação.
São hoje bem conhecidos os benefícios que as universidades dos Estados Unidos, que constituem o exemplo mais conhecido, ganharam com o acolhimento que prestaram a cientistas e académicos, em especial os que deixaram a Europa Central por altura da guerra. O que é extraordinário é que o nosso país, que se manteve neutro e por onde passaram tantos intelectuais de valor, não os tenha acolhido.
Nos anos em que leccionou em Coimbra, Mário Silva preocupou-se em actualizar o saber transmitido pela universidade. Como docente, preocupou-se com a elaboração de manuais universitários de qualidade e publicou as suas lições. Traduziu alguns livros e escreveu muitos ensaios sobre a ciência moderna. A sua actividade pedagógica seria interrompida bruscamente em 1946, quando foi preso pela polícia política do antigo regime. Mário Silva esteve na prisão da PIDE no Porto, sem culpa formada, como represália pelo seu envolvimento no movimento democrático, ao lado do general Norton de Matos. Em 1947, seria expulso da universidade, tal como Ruy Luís Gomes e tantos académicos e investigadores de valor, que o regime impediu de prestar o seu contributo à universidade portuguesa. Muito mais tarde, em 1961, referir-se-ia à sua situação dizendo-se «afastado do serviço docente há muitos anos, por motivos políticos que muito me honram». Depois desse afastamento, chegou a ser vendedor de vinho espumante, para sobreviver, até que foi contratado pela Philips Portuguesa como «conselheiro científico».
Mário Silva só seria reintegrado em 1976, quase dois anos depois da revolução de 25 de Abril. Viria a falecer em 13 de Julho de 1977, mas prestaria ainda serviços à ciência e à cultura portuguesas. Em 1971, o professor de Física seria nomeado para a comissão de planeamento do Museu Nacional da Ciência e da Técnica, que ele projectou. Pouco tempo antes de morrer, o referido museu seria criado oficialmente e Mário Silva nomeado seu director. Enquanto esteve à frente deste projecto, lutou com falta de meios e incompreensões várias, mas lançou as sementes de um museu que hoje renasce em Coimbra, no antigo edifício do Colégio das Artes e no Palácio Sacadura Botte.
Ainda antes de ser demitido, Mário Silva tinha recuperado também o que restava da colecção de instrumentos de física pombalinos que estavam abandonados na sua universidade. Ao descobrir e divulgar esse valioso espólio, criou um museu que manteve e desenvolveu enquanto aí trabalhou. Nos longos anos que se seguiram, esse museu esteve abandonado e só seria reaberto em 1997. O Museu de Física da Universidade de Coimbra é hoje uma das jóias da velha universidade. Se hoje regressasse a Coimbra, Mário Silva teria algumas razões para ficar contente. E outras, muito mais, para ter esperança no futuro.
Nuno Crato |
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