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Francisco Sanches - O "Elo Perdido" entre os descobrimentos e a Ciência Moderna Há anos que venho dedicando algum tempo a uma revisitação mais ou menos sistemática da questão da ciência em Portugal nas suas duas vertentes fundamentais: o seu apogeu no período dos descobrimentos e o seu declínio que acompanhou a decadência do país como potência marítima e não só. Tenho referido amiudadas vezes as dificuldades em manter o debate sobre estas questões a um nível tanto quanto possível factual. Poucas áreas da cultura portuguesa estarão tão fortemente politizadas como esta, dadas as ramificações implicadas neste nó górdio do nosso passado cultural. Aqui, prosseguirei na linha encetada evitando descambar para terrenos ideológicos continuando a cingir-me tanto quanto possível ao que julgo permitirem-me os dados documentais. No passado aludi mais do que uma vez à dificuldade de manter um diálogo em duas frentes: a portuguesa, dividida entre um segmento que embandeira em arco com o empreendimento dos descobrimentos e os novos mundos ao mundo por eles dados, e uma outra, hipercrítica, que aguerridamente se lhe opõe, nomeadamente no que de impacto os descobrimentos possam ter tido no domínio do pensamento. A outra grande frente é a estrangeira, sobretudo a anglo-americana, em geral distraída e confrangedoramente desconhecedora de dados básicos que qualquer dos flancos da frente portuguesa considera indiscutíveis. A grande excepção foi o historiador da ciência R. Hooykaas, holandês mas que publicou em língua inglesa, continuada agora por um seu discípulo, H. Floris Cohen. No campo português, a nossa excepção foi Luís de Albuquerque. Aqui, situar-me-ei na peugada destes historiadores da ciência apontando razões que me parecem colmatar sensivelmente o hiato entre os descobrimentos e o seu impacto na instauração da nova ciência. Francisco Sanches parece-me pilastra fundamental nessa ponte. Lá chegaremos. Num debate tido um dia com um público de historiadores americanos sobre a importância do conceito de experiência nos descobrimentos portugueses como substituidora da autoridade dos clássicos, então critério último de verdade, o argumento final e prevalecedor foi mais ou menos assim expresso:
Custa-me deixar passar esta oportunidade de sublinhar o facto de ser curioso como profissionais de uma disciplina que instaurou os factos como pedra de toque de qualquer edifício ou construção generalizante se com portem como os praticantes das demais profissões defendendo a visão recebida contra a mudança quando se trata de alterar concepções há muito cristalizadas. Julgava que bastaria a antecipação de uma data para um historiador se apressar ao menos a corrigir os compêndios e enciclopédias anunciando contente a descoberta de uma prioridade. Entra então Francisco Sanches. Está praticamente tudo dito sobre o filósofo nascido em Braga ou em Tuy [1] (evitarei aqui o debate por ele não interessar minimamente à questão que nos ocupa) e muito antes de Richard Popkin o "descobrir" e incorporar na narrativa anglo-americana do cepticismo [2] (Popkin afirma que Quod Nihil Scitur se lê quase como um texto de filosofia analítica do século XX [3] ) Entre os autores portugueses que se ocuparam da obra de Francisco Sanches seria injusto não mencionar Artur Moreira de Sá, que lhe dedicou um estudo em dois volumes, Francisco Sanches, filósofo e matemático [4] Lúcio Craveiro da Silva é autor de uma preciosa síntese, escrita já em 1951, sobre a dupla atitude de Sanches em relação ao conhecimento. Por um lado, a dúvida perante o saber recebido, sobretudo da escolástica decadente; por outro, a atitude de confiança face ao futuro da ciência e do seu novo método. [5] Nada, porém, como um contacto directo com o texto para nos darmos conta de como o cepticismo de Francisco Sanches não é pírrico. Lúcio Craveiro da Silva sintetizou muito bem essa diferença: De facto Francisco Sanches não se põe a duvidar, como os cépticos, da existência do eu, dos outros homens, do mundo, nem afirma a omnímoda incapacidade da mente humana para alcançar a verdade. A dúvida não atinge a ordem da existência; nunca duvida da existência do adversário ou do eu, mas sim da ciência do adversário e do eu. [6] A sua é uma posição moderna de recusa de reconhecimento da importância do papel fulcral da experiência e do juízo no estabelecimento da verdade e das consequentes dificuldades de se conseguirem verdades últimas ou definitivas por nos falecerem critérios infalíveis para tal:
Sanches tem mesmo a convicção de estar a propor caminhos novos. Crente, ele sabe que só Deus, criador do mundo, conhece o que criou. Aos seres humanos resta-lhes olhar para essa natureza com atenção, experimentá-la e usar a razão para discerni-la tanto quanto possível. Nominalista, descontente com as verdades deduzidas do silogismo aristotélico, rejeita-as por elas não nos deixarem chegar ao que interessa: à natureza. Escreve Sanches:
Que soa a Descartes e à sua dúvida metódica, não serei eu o primeiro a apontá-lo. Descartes, tem também já sido dito, conhecia Quod Nihil Scitur e, embora escrevendo anos depois o seu Discurso do Método, foi muito mais contido e cuidadoso ao fazer a sua crítica ao saber escolástico e ao aristotelismo em particular. A ligação entre Sanches e a modernidade está pois estabelecida. Na melhor tradição oxfordiana de Roger Bacon, Robert Grosseteste e William of Ockam, Francisco Sanches é uma ponte entre eles e Locke e Hume. Não será exagero dizer-se que Sanches é um dos pais fundadores da nova mentalidade perante a natureza, da ciência nova. Quod Nihil Scitur é um libelo contra o anquilosamento do saber tradicional no beco sem saída da autoridade e do conhecimento à base de universais de onde se deduziam inutilidades indemonstráveis. Sanches chega mesmo a afirmar a impossibilidade de se chegar a possuir certezas porque o nosso conhecimento da verdade está em contínuo fluxo. Ouçamos Sanches:
Por isso, no final da obra, recomenda:
O que falta agora estabelecer é a ligação entre o contributo dos descobrimentos para o choque sofrido por Sanches nas suas certezas. Mas Sanches é afinal claro sobre o assunto. Após enumerar a enorme variedade de seres humanos, de todos os feitios imagináveis ou não, descritos em tantos livros ou narrados por uma grande variedade de observadores, acrescenta:
Francisco Sanches poderia não conhecer em directo o Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira mas deixou-se embrenhar pelo espírito que ressalta já nessas páginas e se torna um leitmotiv nas décadas seguintes e nos anos de formação do espírito do filósofo. Comparemos essa passagem com uma do Esmeraldo:
A distância entre os dois autores é deveras grande e não será necessário apontá-la. Separam-nos cerca de setenta anos de acumulação de novos conhecimentos e já passou o período de desencanto com os clássicos ante o entusiasmo com as novidades vindas com as naus de além-mar. Duarte Pacheco Pereira está sobressaltado de excitação com o reconhecimento dos erros dos antigos e das novas verdades descobertas pela experiência, de tal modo que não se lhe ocorrem razões ulteriores às que a experiência, madre das cousas, lhes proporciona. Trinta anos depois, D. João de Castro vai revelar-se bem mais cuidadoso e consciente já das limitações da experiência. Considera indiscutível a fragilidade do conhecimento fornecido pelos clássicos, mas tempera os dados da experiência com a intervenção do juízo. Agora, com Francisco Sanches, há uma reflexão de fundo sobre as consequências dessa reviravolta operada pelos descobrimentos no conhecimento humano nessa sua pergunta fundamental: e quem é que nos garante que as certezas que agora julgamos possuir são as últimas? Chega mesmo a parecer Karl Popper quando, após apontar o facto de nunca ninguém publicar um livro definitivo, faz notar que, se pudesse e vivesse uma centena de anos, seria impossível não estar constantemente a acrescentar, subtrair, mudar e renovar alguma coisa. [13] Tinha-se chegado à radical consciência da fragilidade do conhecimento humano, da necessidade de se fundamentá-lo sim, na experiência e no juízo crítico, mas de isso não bastar para nos fornecer certezas absolutas porque qualquer certeza poderia não demorar muito a ser substituída por uma nova certeza. Daí a recomendação de Sanches ao seu leitor:
Quod Nihil Scitur termina anunciando uma nova obra onde proporia uma maneira de se sair dessa indecisibilidade em que caímos quando se nos vão as certezas metafísicas e nos confinamos à análise da natureza pela experiência e juízo falíveis. Infelizmente Sanches ou não chegou a escrever essa obra, ou ela se perdeu. Qualquer que fosse a sua proposta para a saída duma situação susceptível de conduzir ao cepticismo ou ao relativismo, não parece que pudesse vir a entrar em contradição com os pontos de vista de Quod Nihil Scitur ou de outras obras suas. Teria sido interessantíssimo se pudéssemos de facto ter acesso à proposta de Sanches para a fortificação das bases de um conhecimento agora consciente da sua contingência, mas ficámo-nos por aí, às portas de Descartes, que irá então radicalizar na sua dúvida a de Sanches. O conhecimento moderno vai lançar-se no infindável aprofundamento e fortificação dos seus alicerces, numa reprodução do mito de Sísifo em imagem invertida. A segunda edição de Quod Nihil Scitur apareceu em Frankfurt em 1618 quando Descartes estava nessa cidade e parece óbvio no Discurso do Método que ele teria conhecido a obra de Sanches. [15] De qualquer modo Descartes não é a única porta de entrada para a modernidade e o livro de Sanches teve larga difusão na Europa do seu tempo. Um outro suposto pai fundador do novo espírito científico é Francis Bacon e a propósito dele já Reyer Hooykaas se encarregou de estabelecer a ligação entre os descobrimentos e a sua nova visão [16] . Bacon escreve no Novum Organum:
E mais adiante:
Hooykaas conclui o seu ensaio afirmando: The considerable time lag between the earliest Portuguese oceanic voyages and the work of the early modern seventeenth-century scientists was an incubation period, in which the `new philosophy' had already arisen, albeit almost noiselessly. In 1600, Gilvert published the results of research on magnetism performed in the past (his own experiments included) under the title Phisiologia Nova; and Kepler (1609) called his main work Astronomia Nova. Long before them, however, (1513) a series of `Tabulae Modernae', based on the recent voyages of discovery, was added to Ptolemys Geographia by its editor Waldseemuller. The `geographical revolution' had preceded them by a whole century. Henry the Navigator, who organized the first great voyages of discovery, was no scientist, and he had no scientific aims. But it was his initiative that triggered off a movement which, growing into the avalanche of upheaval in sixteenth-century geography, opened the way for the reform, sooner or later, of all other scientific disciplines. [19] Luís de Albuquerque lembrou-nos por sua vez que,
Às listas fornecidas por Hooykaas e Albuquerque, podemos agora acrescentar Francisco Sanches, que entre 1574 e 1581, bem antes de Bacon, levou às últimas consequências os resultados da aventura dos descobrimentos. Não restam dúvidas sobre a larga divulgação que o seu livro obteve na Europa do seu tempo, sobretudo através da segunda edição em Frankfurt em 1618. Os historiadores que continuam a levantar a questão do impacto dos descobrimentos no pensamento moderno europeu aí têm pois o elo supostamente perdido ou, para muitos, mesmo inexistente. [1] Elaine Limbrik escreve sobre a suposta ascendência cristã-nova de Sanches: "In view of these historical and religious circumstances, many scholars have inclined to the opinion that Francis Sanches was a `New Christian'. Yet there are no contemporary references to Sanches as a `New Christian'. But , then, neither do Montaigne's contemporaries refer to his Jewish heritage through his mother, Antoinette de Loupes, a rich descendant of Portuguese Jews, the Lopez family. (...) Sanches himself went to great pains to assure his readers of his orthodox Catholic beliefs and habitually ended his philosophical and medical treatises, written during his tenure at the staunchly Catholic University of Toulouse, with the traditional prayer `Laus Deo Virginique Mariae"'. (Francisco Sanches, That Nothing Is Known. Cambridge University Press, 1988, pp. 6-7). |
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