Onésimo T. Almeida

Sobre a revolução da experiência no Portugal do século XVI: Na pista do conceito de "Experiência a Madre das Cousas"


Actas do Quinto Congresso da Associação
Internacional de Lusitanistas, Oxford-Coimbra,
1998, pp. 1617-1625 (adaptado)


As edições contemporâneas de La Rebelión de las Masas, de Ortega y Gasset, costumam incluir, mesmo na versão castelhana, dois Prólogos que o autor escreveu para as primeiras traduções francesa e inglesa do livro. Surgem exactamente com os títulos: Prólogo para Franceses e Prólogo para Ingleses. Vindo eu há dezasseis anos a dedicar alguma parte do meu tempo de investigação ao papel de Portugal na aurora da ciência moderna, dou comigo numa situação de ambivalência. Quando escrevo para portugueses, uma atitude crítica leva-me a atenuar, ou abrandar, alguns entusiasmos excessivos da parte de autores sérios, mas que alcandoraram o papel desempenhado pelos portugueses do século XVI à categoria de "pré-ruptura epistemológica" (Joaquim Barradas de Carvalho), ou de "revolução da experiência", como lhe chamaram nos anos eufóricos do salazarismo. [1] Fi-lo, por exemplo, num ensaio incluído em volume colectivo publicado há uma dúzia de anos pela Academia das Ciências de Lisboa. Quando, porém, sobre o tema escrevo ou falo em inglês dirigindo-me a um público anglo-saxónico, que desse período da nossa história pouco mais sabe do que os nomes de "Prince Henry" e Da Gama, vejo-me na necessidade de entrar nos contextos dos debates contemporâneos de história e filosofia das ciências, acentuando a importância do que em Portugal se escreveu no século XVI. Ao fazê-lo, vou mais além de um simples carregar nas tintas, mas procuro reformular os parâmetros do discurso português e demonstrar como o nosso século XVI constituiu uma etapa importante que nos permite compreender melhor como se efectuou a transição da concepção clássica e medieval da ciência para a moderna.

Apresentando aqui um texto escrito originalmente em inglês e destinado a um público anglo-americano, sinto-me perdido como aquele soldado que não conseguia distinguir a mão direita da esquerda. Depois de sucessivas lições do furriel - "Esta é a tua mão direita, esta é a tua mão esquerda” – o furriel enrolou-lhe os braços um no outro e perguntou-lhe: "Qual é agora a tua mão direita e a esquerda?" E o soldado perdido: "Mas o meu furriel baralhou-mas todas!"

Mas tentemos. A abrir um volume colectivo de ensaios intitulado Renaissance and Revolution. Humanists, Scholars, Craftsman and Natural Philosophers, J.V. Field e Frank A.J. James explicam que pretendem com tal título pôr a ênfase do livro "no processo de continuidade em vez de nas mudanças gestalt, abruptas e em catadupa (tongue-twisting)". Eles crêem que os termos "renascença" e "revolução científica" denotam ambos fenómenos históricos reais, mas não curtos, demarcados, e de número, medida e peso bem definidos". [2]

Nas minhas tentativas de situar o papel de Portugal no emergir da ciência moderna tenho desde sempre partilhado desse ponto de vista. Espero, por isso, ter demonstrado tanto numa crítica à obra do historiador Joaquim Barradas de Carvalho [3] , como num outro ensaio intitulado precisamente "Portugal and the Dawn of Modern Science", publicado no volume Portugal, the Pathfinder, organizado por George Winius [4] , que aquilo que teve lugar em Portugal, durante o período das descobertas nos séculos XV e XVI, constituiu um importante passo para o surgimento da ciência moderna, muito embora não possamos falar de nenhuma ruptura maior, nem de revolução científica, pelo menos no sentido genérico que a expressão tomou a partir de Thomas Kuhn. Há, todavia, bastante evidência negligenciada para os historiadores da ciência começarem a corrigir algumas datas e marcos ou fronteiras, uma vez que o que aconteceu em Portugal precede, pelo menos em meio século, alguns (alguns - faço questão de sublinhar) desenvolvimentos ocorridos na Europa que os compêndios e livros de história consideram merecedores de registo.

Na presente comunicação gostaria de concentrar-me na muito debatida expressão "a experiência como madre das cousas", um conceito importante para estabelecer o grau de transformação mental que vagarosa mas solidamente ocorreu em algumas importantes personagens do processo das explorações marítimas portuguesas. Ao tentar traçar o rasto do uso dessa expressão em Portugal contra o pano de fundo de outros países europeus, espero poder confirmar as minhas afirmações anteriores de que a transição de um conhecimento baseado nas autoridades clássicas para um conhecimento baseado em evidência empírica foi gradual, mas também que o que aconteceu em Portugal constitui uma pedra de toque nesse processo global.

Ao que parece, o conceito circulou como expressão cunhada em três fórmulas semelhantes - a experiência como mãe/mestra/amante das coisas.

No seu History of Magic and Experimental Science, Lynn Thorndike menciona a expressão traduzida para inglês como "the mistress of things” [5] . Agarrei nessa vaga pista e, depois de longa busca, deparei com outra semelhante no Liber Pompilli Azali Placentini De Omnibus Rebus Naturalis, publicado em Veneza em 1544. No original latino lê-se "experientia, quae omnium magistrum est" [6] . Um ano mais tarde ela surge idêntica num texto francês, de Jacques Cartier, Brief récit ... de La navigation faicte es Ysles du Canada (1545):

Je ditz que le prince d'iceulx philosophes a laissé parmy nos escriptures uns mot de grand conséquence qui dit experientia est rerum magistra. Les simples mariniers de présent on congueu le contraire d'icelle opinion des philosophes par vraie expérience. [7]


Um suposto emprego anterior da expressão por Leonardo da Vinci não foi por mim confirmado. Com efeito, o que o artista usa é uma variação muito diferente: "A sabedoria é a filha da experiência". [8]

J. Barradas de Carvalho [9] encontrou três exemplos do uso da expressão em livros portugueses: um, pelo cronista Gomes Eanes de Zurara, em 1448, e outro, escrito numa mistura de português e castelhano (o que, segundo Barradas de Carvalho, significa ser da autoria de um português), um Tratado de Paz entre o rei de Castela e o rei D. João I. O terceiro caso é uma pequena variante - "a experiência, que é a mãe de todas as coisas, e sempre mestra" - num documento de Afonso, rei de Aragão, em 1438.

Mas estes exemplos não implicam uma atitude empírica no sentido moderno, uma vez que o contexto em que surgem só nos autorizam a tomá-los no significado principal de "sabedoria aprendida na experiência da vida real". O contexto muda, contudo, em Esmeraldo de Situ Orbis, essa notável obra escrita supostamente entre 1505 e 1508 por Duarte Pacheco Pereira [10] e, tanto quanto sei, nunca mencionada em nenhum livro de história da ciência, nem objecto de qualquer estudo por um autor não português.

A diferença de contexto a que refiro jaz no facto de a obra de Duarte Pacheco Pereira constituir uma descrição factual da exploração da costa africana pelos navegadores portugueses. O autor revela perfeita consciência de estar a relatar em primeira mão acontecimentos que contradizem os ensinamentos dos antigos. Daí a necessidade de enfatizar que a experiência de observação directa possui, para ele, maior peso do que os escritos dos mais reverenciados autores clássicos. A palavra "experiência" é usada oito vezes sempre num contexto de observação empírica - "e esta terra equinocial é muito vizinha do círculo da equinocial, da qual os amigos disseram que era inabitável e nós por experiência achamos o contrário" (cap. 1, Livro IV); "a experiência, que é madre das cousas, nos desengana e de toda a dúvida nos tira" (p.135). A expressão "a experiência, que é a madre das cousas" é utilizada duas vezes também num contexto semelhante - "sendo a experiência a madre das cousas, ela ensinou-nos a verdade segura" (p.55).

O apelo à experiência é feito muitas vezes para demonstrar os erros dos antigos - "a experiência que nos fez viver sem engano das abusões e fábulas que alguns dos antigos cosmógrafos escreveram acerca da descrição da terra e do mar" (Cap. 1, Liv. II).

Depois de Esmeraldo de Situ Orbis, as referências à experiência como fundamento para atingir a verdade, mais sólido do que os ensinamentos dos antigos, torna-se um leitmotiv nos escritos portugueses. De novo Barradas de Carvalho a encontrou duas vezes em João de Lisboa (1514), uma em Sá de Miranda (1515), uma dúzia de vezes em Gaspar Barreiros (1546) e catorze nas obras de D. João de Castro, escritas entre 1536 e 1548 [11] . No caso particular de D. João de Castro, a convicção de que todo o conhecimento empírico recolhido pelos portugueses é melhor fundamentado do que o dos antigos é pressuposto dos seus escritos. Com efeito, ele refuta Ptolomeu, pelo menos, vinte vezes; Plínio, pelo menos, três; Pompónio Mela, quatro vezes; e Estrabão uma [12] . Daí em diante, o uso do termo no novo contexto de critério mais seguro de verdade, espalha-se a ponto de ser incorporada n'Os Lusíadas, como se ouve frequentemente repetir. Mas, para o nosso argumento aqui, não será necessário irmos além da primeira metade do século XVI.

O emprego em Sá de Miranda da expressão que vimos a analisar merece um escrutínio atento. Escreve ele:

Com efeito, não se deve falar de coisas do mundo a não ser depois de muita e imensa experiência que, segundo o Filósofo, est mater rerum. [13]


Sic, em Latim, e atribuída ao Filósofo com maiúscula, o que, como toda a gente sabe, naquele tempo se não referia a mais ninguém a não ser Aristóteles, habitualmente citado em tradução latina. Referência idêntica, aliás, à que atrás encontráramos no texto do navegador Jacques Cartier, o que confirma a ideia de que a expressão circulava em latim e era atribuída a Aristóteles. Mas onde usa Aristóteles essa expressão?

Levei a cabo uma investigação minuciosa de todos os usos da palavra empiria (experiência, em grego), nas obras de Aristóteles, e nunca encontrei nada parecido com "a experiência, madre das cousas", muito embora qualquer pessoa familiarizada com o pensamento do filósofo pressinta que a expressão capta muito bem a concepção aristotélica de experiência e o seu papel no processo cognitivo. Não satisfeito com a minha evidência negativa, escrevi a um mundialmente reconhecido especialista em Aristóteles, Joseph Owens, que confirmou os meus resultados, acrescentando que a expressão soava, na verdade, a aristotélica, apesar do facto de, como tal, não se encontrar em nenhum dos seus escritos.

Consultei também G.E.R. Lloyd, o bem conhecido historiador da ciência grega, que corroborou a opinião de Owens.

Plenamente consciente do facto de a expressão em causa não poder vir de Platão, fiz, todavia, uma pesquisa e deparei com uma frase na sua VIII carta - "a experiência parece ser a mais segura pedra de toque de todas as coisas". (Incidentalmente, o facto de a autenticidade dessa carta ser posta em dúvida não importa para o nosso caso, uma vez que se trataria sempre de um texto muito antigo.)

Deste modo, podemos concluir que, por mais aristotélica que pareça, a expressão não é de Aristóteles, embora possa ter sido cunhada por um dos seus muitos comentadores.

Eventualmente, um escolástico medieval, uma vez que surge em Latim, mesmo ainda depois de Duarte Pacheco Pereira a pôr a circular em português.

Que significa tudo isto?

Como tentei demonstrar num longo ensaio cujo objectivo era precisamente moderar certas conclusões exageradas de Barradas de Carvalho, a concepção da experiência como fundamento ou critério de verdade não constitui per se nenhuma novidade na história da ciência. Aristóteles desenvolveu uma sofisticada reflexão sobre o papel dela no conhe­cimento e foi ainda mais além, tecendo considerações sobre a interacção da experiência com a razão, ou, mais especificamente, o juízo. Duarte Pacheco Pereira não foi tão longe, muito embora trinta anos mais tarde o tenha feito D. João de Castro.

Nesse acima referido ensaio, tentei também demonstrar que o mal da ciência aristotélica foi não ter seguido de perto os postulados teóricos de Aristóteles e ter passado a usar os escritos do filósofo como textos dogmáticos. Na verdade, Aristóteles, em termos científicos, falhou mais em questões de facto do que em teoria, quando, por não ter possibilidade material de acesso a certos dados, especulou ou se fiou em relatos de segunda e terceira mão. Sempre que pôde ele próprio examinar a matéria de que falava, revela uma atitude ainda hoje considerada científica, como no caso dos seus escritos sobre biologia, mais especificamente, zoologia e anatomia animal. Foi nesse contexto que procurei demonstrar também que, muito antes de Duarte Pacheco Pereira e dos outros autores portugueses de quinhentos, várias pessoas escreveram, por vezes extensa e profundamente, sobre a importância da experiência na aquisição do conhecimento, esboçando claramente as bases de uma metodologia científica nos parâmetros que hoje possuímos, se bem que sempre dentro ainda do paradigma de fundo da ciência clássica. Eles são, e para mencionar apenas os mais importantes, Galeno, Robert Grosseteste, Nicole d' Oresme, Theodoric de Freiburg e Roger Bacon [14] (não confundir com Francis Bacon, também inglês, mas de trezentos anos depois). Roger Bacon foi, por sinal aluno e mais tarde professor aqui nesta mesma Universidade de Oxford, no século XII.

Faço questão de acrescentar que as minhas divergências relativamente a Barradas de Carvalho vão mais longe. Têm a ver também com aquilo que ele supõe ser um avanço português na matematização do real, quando se trata apenas de progresso na introdução da numeração árabe, que irá permitir o avanço rápido das operações e eventualmente da matemática. Mais ainda, Barradas de Carvalho julga ver uma dicotomia entre os humanistas e os "homens da experiência", que só se explica pela sua predilecção por uma perspectiva histórica muito próxima da de Louis Althusser. Nesse referido ensaio, tentei demonstrar as deficiências desse projecto e fui ainda mais longe num outro estudo especificamente sobre o conceito de ideologia em Althusser, que enforma toda a sua visão dicotómica da história e da história das ciências. Por tudo isso, aqui não avançarei mais nessa direcção. [15]

O que aconteceu então novo em Portugal foi que, ao contrário das contribuições isoladas e sem continuidade, ou consequência dessas figuras hoje recuperadas pela história das ciências, a concepção da experiência como fonte mais segura de conhecimento do que os ensinamentos dos clássicos tomou pé e se difundiu entre os espíritos ligados à exploração dos mares em quinhentos, passando a adquirir mesmo um estatuto de critério fundamental ou último de verdade em questões de saberes materiais. (Noutro ensaio fiz também uma tentativa de chamar a atenção dos interessados nestas matérias para um estudo substancial do holandês R. Hooykaas sobre D. João de Castro, que demonstra cabalmente ter constituído ele o ponto máximo da elaboração de uma metodologia científica entre os autores do seu tempo [16] . Esse magnífico estudo, "Science in Manueline Style", jaz sepultado em inglês como Apêndice - são quase trezentas páginas! - no quarto volume da edição crítica das Obras de D. João de Castro, publicada naturalmente em português e em Portugal [17] . Só por milagre um historiador da ciência que não saiba português - felizmente, como imaginam, quase todos os historiadores da ciência falam português ... - encontrará esse estudo e corrigirá depois a sua narrativa do que, em matéria de metodologia científica e teorização sobre a ciência, aconteceu no século XVI.)

A riqueza de informação em astronomia, geografia física e humana, botânica e técnicas de navegação levadas para Portugal pelos navios regressados provocou e promoveu a larga aceitação da experiência como critério de verdade. Pedro Nunes, D. João de Castro e Garcia de Orta, todos na primeira metade do século XVI, desenvolveram e solidificaram essa atitude mental - uma sistemática postura anti-autoridade dos antigos, que já está tão convincentemente presente nas páginas de Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, esse mesmo logo na primeira década do século. Está-se ainda longe da grande viragem que iria acontecer com Newton e Galileu, mas o terreno ficara então bem mais preparado para ela.

Sobre o impacto dessa atitude na fase seguinte da mudança do paradigma da ciência clássica para o moderno, que estava cada vez mais próximo, não poderei tratar aqui. Mas recordo que quem ler Quod Nihil Scitur, de Francisco Sanches, encontrará uma referência prolongada à influência das descobertas na sua atitude perante a certeza; ela parece mesmo uma paráfrase a uma passagem de Esmeraldo, de oitenta anos antes. [18]

Sendo assim, é na verdade surpreendente encontrar num livro, por sinal altamente erudito, como New Worlds, Ancient Texts, do historiador Anthony Grafton, um parágrafo de abertura escrito nestes termos:

Entre 1550 e 1650 os pensadores ocidentais deixaram de acreditar que podiam encontrar todas as verdades importantes nos livros antigos. Nenhum encontro entre o texto e o leitor epitomiza melhor a mudança que então teve lugar - e muito apropriadamente - no mar, quando o jesuíta José de Acosta, um homem altamente instruído que escreveu uma das mais originais histórias do que ele chamou as índias, se apercebeu de que a sua própria experiência de viagens contradizia a visão dos maiores filósofos antigos. [19]


A citação de Acosta, que Grafton apoda de "dramática edipiana mesmo", soa a um eco retardado em setenta e cinco anos de muitas das passagens da citada obra de Duarte Pacheco Pereira. Comparemos um parágrafo de Acosta com apenas um de vários possíveis de Esmeraldo de Situ Orbis. Primeiro a afirmação de Acosta:

Descreverei o que me aconteceu quando passei às Índias. Tendo lido o que os poetas e filósofos escreveram da Zona Tórrida, persuadi-me a mim próprio de que quando chegasse ao Equador não poderia suportar o calor violento, mas não aconteceu assim. Porque quando passei, o que aconteceu quando o sol estava no seu zénite, tendo entrado no signo zodíaco de Aries, em Março, eu senti tanto frio que fui forçado a ir para o sol para me aquecer. Que poderia eu fazer então senão rir da Meteorologia de Aristóteles e da sua filosofia? Pois naquele lugar e naquela estação, onde tudo pelas suas regras deveria estar abrasado pelo calor, eu e os meus companheiros tínhamos frio. [20]


Comparemos então agora com Duarte Pacheco Pereira:

Nunca os nossos antigos antecessores, nem outros muito mais antigos doutras estranhas gerações, poderam crer que podia vir tempo que o nosso oucidente fora do ouriente conhecido e da India pelo modo que agora é; porque os escritores que daquelas partes falaram, escreveram tantas fábulas, por onde a todos pareceo impossible que os Indianos mares e terras do nosso oucidente se pudessem navegar. - Tolomeu escreve, na pintura de suas antigas tábuas da cosmografia, o mar Indico ser assim ua alagoa, apartado por muito espaço do nosso mar oceano oucidental que pela Etiópia meredional passa; e que antre dous mares ia ua ourela de terra, por impedimento da qual, pera dentro, pera aquele golfao Indico, per nenhum modo, nenhua não podia passar; [...] Pompónio Mela, no princípio do seu segundo livro e assi no meio do terceiro De Situ Orbis, e Mestre João de Sacrobosco, Ingrês, excelente autor, na arte da astronomia, no fim do terceiro capítulo de seu Tratado da Esphera, cada um destes em seu lugar, ambos disseram que as partes da equinocial eram inabitáveis pola muito grande quentura do sol; donde parece que, segundo sua tenção, aquela tórrida zona por esta causa se não podia navegar, pois que a fortaleza do sol impedia não haver i habitação de gente; o que tudo isto é falso; certamente temos muita razão de nos espantar de tão excelentes homens, como estes foram, e assi Plínio e outros autores que isto mesmo afirmaram, caírem em tamanho erro como neste cave disseram, porque eles todos confessam a India ser verdadeiramente ouriental e povorada de gente sem número; e como assim seja que o verdadeiro ouriente é o círculo da equinocial, que por Guiné e pola India passa e com a maior parte dela tem vizinhança, certamente se mostra ser falso o que escreveram; pois debaixo da mesma equinocial há tanta habitação de gente, quanta temos sabida e praticada; e como quer que a experiência é madre das cousas, por ela soubemos radicalmente a verdade [...] [21]


Num dos ensaios anteriormente mencionados tentei de mostrar como o desconhecimento do que ocorreu em Portugal durante a época das explorações marítimas dos séculos XV e XVI tem levado a lacunas e a erros historiográficos. Infelizmente, a situação não mudou muito. Apesar de toda a informação em inglês de que podia dispor no volume/catálogo de uma exposição anterior também na New York Public Library - Portugal-Brazil [22] - particularmente a contida num ensaio de Luís Albuquerque, Anthony Grafton não se serviu dela.

Ainda hoje, a informação relativa ao papel de Portugal na aurora da ciência moderna parece incapaz de penetrar no mainstream da historiografia da ciência em língua inglesa. O livro de Field e James citado no início desta comunicação - Renaissance and Revolution. Humanists, Scholars, Craftsman and Natural Philosophers in Early Modern Europe - também não dá nenhum sinal de os seus autores estarem conscientes da riqueza de material existente em português e que naturalmente lhes faria alterar muitas datas. Nem também duas outras obras igualmente recentes - The Cambridge History of Renaissance Philosophy, organizada por Charles B. Schmitt e Quentin Skinner [23] e The Rise of Early Modern Science - Islam, China, and the West, de Toby Huff (1993) dedicam uma linha sequer aos autores portugueses. Um volume colectivo organizado por Roy Porter e Mikulás Teich, The Renaissance in National Context [24] , dedica um capítulo à Espanha e a Portugal (David Goodman, "The scientific revolution in Portugal and Spain") mas não revela qualquer sinal de conhecimento das fontes atrás mencionadas, passando assim de lado pelo que me parece ser o mais interessante e inovador contributo de Portugal para a primeira revolução científica, tema aliás do capítulo de Goodman.

Este corpus de literatura portuguesa de viagens e manuais práticos não recebeu também qualquer atenção dos organizadores de um respeitável congresso sobre "Ciencia, descubrimiento y mundo colonial" que há poucos anos teve lugar em Madrid, e cujas actas, organizadas por A. Lafuente, A. Elena e M.L. Ortega, foram publicadas com o título de Mundialización de la Ciencia y Cultura Nacional. [25]

Para terminar, apenas mais um exemplo da minha longa lista: o muito lido e comentado livro de Steven Shapin, A Social History of Truth. Civility and Science in  Seventeenth-Century England [26] repete o cliché segundo o qual:

Os "modernos" do século XVII distinguiram-se dos amigos "escolásticos" precisamente porque [ ... ] de Gilbert e Bacon a Descartes e Boyle, os novos filósofos da natureza e os seus aliados culturais privilegiaram a supremacia da experiência directa individual, ou da intuição sobre a confiança na autoridade de autores antigos (p. 16).


Como se vê, tudo já no século XVII.

E no entanto, se Pedro Nunes, Dom João de Castro e Garcia de Orta não estão traduzidos, pelo menos Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, está publicado em inglês pela prestigiosa Hakluyt Society desde 1937. A primeira revolução científica, que hoje sabemos ter sido mais lenta do que há algumas décadas se chegou a supor, parece, neste capítulo, ter conseguido ser ainda assim mais rápida do que muita da sua própria historiografia.

Para terminar, porém, com nota mais optimista, registarei uma excepção significativa num dos mais notáveis estudos contemporâneos sobre a revolução científica do século XVII e seus precedentes. Trata-se de The Scientific Revolution. A Historiographical Inquiry, de H. Floris Cohen [27] que dedica quatro páginas ao papel dos portugueses, limitando-se embora a citar Hooykaas. Esta surpresa explica-se pelo facto de Cohen ter sido aluno de Hooykaas. [28]

Brown University



[1] Ver João de Castro OSÓRIO, A Revolução da Experiência, Lisboa, 1947

[2] Cambridge: Cambridge University Press, 1993, p.1.

[3] "Sobre o papel de Portugal nas etapas preliminares da revolução científica do século XVII", in: J.P. Peixoto et al., História e Desenvolvimento da Ciência em Portugal, vol. 11, Lisboa: Publicações do II Centenário da Academia das Ciências de Lisboa, 1986, pp. 1173-222.

[4] George D. WINIUS, ed., Portugal, the Pathfinder. Journeys from the Medieval toward lhe Modern World, 1300-ca.1600, Madison, Wisconsin, 1995, pp.341-61.

[5] Vol. 3, New York: Columbia University Press, 1934, p.41.

[6] Liber 1, cap. 20, p.21.

[7] Reimpression, Paris: Tross, 1863. Reproduction photomécanique, Paris 1937. (Cit. em A la Recherche, p.502)

[8] The Notebooks of Leonardo da Vinci, arranged and rendered in English and introduced by Edward Maccurdy, New York: George Braziller, 1955, p.80.

[9] J. Barradas de Carvalho, A la Recherche de la Spécificité de la Renaissance Portugaise, 2 vols., Paris: Fondation Calouste Gulbenkian/Centre Culturel Portugais, 1983.

[10] Duarte Pacheco PEREIRA, Esmeraldo de Situ Orbis, Lisboa: Edição comemorativa da descoberta da América, 1892.

[11] CARVALHO, p.678.

[12] CARVALHO, p.790.

[13] Citado em CARVALHO, p.678, nota 138.

[14] Ver ALMEIDA, 1986.


[15] Ver ALMEIDA, 1986, pp. 1195-200.


[16] Hooykaas and D. João de Castro", comunicação lida no congresso "Spain11and Portugal of the Navigators: The Age of Exploration", George Washington University, Washington, DC, 1992.

[17] D. João de Castro, Obras Completas, 4 vols., edição crítica por Armando Cortesão e Luís Albuquerque, Coimbra, 1968-1980.

[18] Costuma associar-se o nome de Francisco Sanches ao cepticismo. Quem ler Quod Nihil Scitur atentamente aperceber-se-á de que o filósofo parece mais próximo da concepção de verdade à Karl Popper do que da de qualquer céptico, exactamente porque se apercebeu de que aquilo que tomávamos como verdade sólida é ilusório, não por ser impossível sabermos alguma coisa, mas porque não podemos ter a certeza absoluta de nada.

[19] O livro serviu de catálogo para uma exposição com o mesmo título na New York Public Library. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University, 1992, p.1.

[20] Citado em GRAFTON.

[21] Cap. I, Livro IV.

[22] Portugal-Brazil. The Age of Atlantic Discoveries, Lisbon, Milan, New York: Bertrand Editora, Franco M. Ricci, Brazilian Cultural Foundation, 1990.

[23] Toby E. HUFF, The Rise of Early Modern Science. Islam, China, and the West, Cambridge University Press, 1992.

[24] Cambridge University Press, 1992.

[25] Actas del Congreso Internacional "Ciencia, Descubrimiento y Mundo Colonial", Madrid: Doce Calles, 1993.

[26] Chicago: The University of Chicago Press, 1994, p.16.

[27] Chicago: The University of Chicago Press, 1994.

[28] Noutro lugar referir-me-ei em pormenor à correspondência que sobre esta matéria tenho mantido com H. Floris Cohen.


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