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O Fogo-de-Santelmo na Literatura de Viagens O «LUME VIVO QUE A MARÍTIMA GENTE TEM POR SANTO», NO DIZER DE CAMÕES, APARECE INÚMERAS VEZES NA LITERATURA PORTUGUESA A primeira referência escrita à luminosidade hoje conhecida como fogo-de-santelmo é, possivelmente, a que aparece nos «Hinos Homéricos», uma colectânea de poemas no estilo de Homero escrita por vários autores desconhecidos. Referem-se aí os gémeos mitológicos «Castor o domador de cavalos e o inocente Pólux, filhos de Zeus e filhos gloriosos da Leda do belo andar». Por ocasião das tempestades, diz-se que os marinheiros apelam a esses «filhos do grande Zeus, consagrando cordeiros brancos e deslocando-se para a proa; o vento forte e as vagas do mar mantêm o navio sob a água, até que, subitamente, os dois são avistados no ar, rápidos e com asas douradas. Imediatamente suavizam as rajadas dos ventos cruéis e acalmam as ondas sobre o branco mar: são belos sinais e um salvamento» . Séculos mais tarde, já na era cristã, os navegadores do Mediterrâneo viam neste lume misterioso o sinal da intervenção do Corpo Santo através de Santo Erasmo, um bispo italiano assassinado em 303 d.C. também conhecido por Santo Elmo ou Sant’Elmo. «Tornando a 2ª vez à Índia, que foi no ano de 1545, esta mesma noite nos apareceu a aparência ou sinal a que os marinheiros chamam Corpo Santo, per duas vezes, e duraria espaço de meia hora. Primeiramente o vimos na ponta do mastaréu da gávea, e depois no lais da verga, e depois na ponta do mastro da mesma e depois na enxárcia. Esta aparência a que chamam Corpo Santo era uma claridade tamanha como a que costuma fazer uma candeia ou vela, mas a sua luz não era vermelha como fogo, mas prateada à semelhança do que se vê na Lua; e, quando dava algum relâmpago, não aparecia esse sinal. Porém, como passava o esplendor do relâmpago, tornava a aparecer. Quando nos apareceu este sinal, chuviscava, e o céu estava escuro e cerrado, e foi cousa muito patente e sem nenhum engano de vista, e parecia mistério e segredo da natureza. A este tempo estávamos norte sul com o Rio do Infante, e em altura de 34º.»
Na História Trágico-Marítima há várias referências interessantes. Na Relação do Naufrágio da Nau Santa Maria, um relator anónimo descreve a crença extrema dos marinheiros. «Têm todos os homens do mar tamanha veneração ao Bem-Aventurado S. Frei Pero Gonçalves, e o têm por tão seu advogado nas tormentas do mar, que crêem de todo o seu coração que aquelas exalações que nos tempos fortuitos e tormentosos aparecem sobre os mastros, ou em outras partes da nau são o Santo que os vem visitar e consolar. E, tanto que acertam de ver aquela exalação, acodem todos ao convés a o salvar com grandes gritos e alaridos, dizendo: «Salva, salva, Corpo Santo». E afirmam que, quando aparecem nas partes altas, e são duas, três ou mais, aquelas exalações, que é sinal que lhes dá bonança; mas, se aparecer uma só, e pelas partes baixas, que denuncia naufrágio. E tão crentes e firmes estão nisto que, quando aquelas exalações aparecem sobre os mastaréus, sobem os marinheiros acima, e afirmam que acham pingos de cera verde; mas eles não os trazem nem os mostram. Ao menos nós não os vimos alguma hora. e se os religiosos que vêm nas naus lhes querem ir à mão, dando-lhes razões para lhes mostrar que aquilo são exalações, e declarando as causas naturais por que se geram e por que aparecem, não falta mais que tomarem as armas e levantarem-se contra quem lhes contradiz aquela sua fé, que por tal o têm. Um outro relato na mesma colectânea é o de Henrique Dias, criado de D. António, Prior do Crato, na Relação da Viagem e Naufrágio da Nau S. Paulo, que partiu da Índia em 1560: «[...] a qual claridade vendo o contramestre e marinheiros da proa a começaram a salvar da parte de Deus e Nossa Senhora e seus Santos, em vozes muito altas a que a gente toda à uma respondia com grandes gemidos e lágrimas [...] Assim que toda a noite se foi nestes gemidos e brados, andando sempre estas luzes conosco.» «[Numa noite de tempestade] apareceu o Corpo Santo em a verga do mastro grande, em figura de uma faísca de fogo, muito clara e resplandecente, e dali, à vista de todos, se foi pôr sobre o mastro da mezena, onde o salvou o piloto da nau, da cadeira em que estava governando, dizendo: Salvé, Corpo Santo, salvé: boa viagem, boa viagem. E toda a mais gente da nau, que presente estava, respondeu da mesma maneira: Boa viagem, boa viagem, com muitas lágrimas de alegria. Neste lugar esteve esta luz resplandecente um grande espaço de tempo e dali desapareceu à vista de todos.» Mais à frente, dá-se conta dos conflitos entre mareantes e prelados que esta crença extrema podia desencadear. A determinada altura da borrasca um soldado ajoelhara perante a luz e batera no peito repetidamente exclamando: «Adoro-vos, meu Senhor Pero Gonçalves; vós me salvai neste perigo por vossa misericórdia». Os padres a bordo advertiram-no de que não deveria orar assim, pois a adoração se devia apenas a Deus e não aos santos. Mas o soldado respondeu «Meu Deus será agora quem deste perigo me tirar». PILOTO: GREGÓRIO: PILOTO: Camões fala do fogo-de-santelmo, que descreve como «o lume vivo, que a marítima gente tem por santo», nos dois primeiros versos da estância 18 do Canto V d’Os Lusíadas. A referência insere-se no relato feito por Vasco da Gama ao rei de Melinde, na parte em que enumera as experiências fantásticas testemunhadas pelo narrador: «Vi, claramente visto, o lume vivo Bocage alude à crença no soneto Deprecação feita durante uma tempestade: Para nós, compassivo os olhos lança, E Afonso Lopes Vieira, numa paráfrase a um relato da «História Trágico-Marítima», faz uma chamada ao passado esquecido e lamenta o esmorecimento do culto a S. Pero Gonçalves: Bailando por São Frei Pero, As referências literárias e populares são muitas e inequívocas, tais como o são muitos relatos de viagem. Os relatos referem-se a um fenómeno atmosférico verdadeiro, hoje chamado fogo-de-santelmo. Um fenómeno de tal forma integrado na história e literatura portuguesa que nesta se encontram muitas das descrições históricas que contribuíram para o seu conhecimento científico. Nuno Crato |
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