|
Francisco António Ciera (1763-1814)
|
|
|
|
Manuscrito de uma das versões da Carta dos pontos da série de triângulos assinada pelo próprio Ciera, ca. 1791 (Direcção de Infra-Estruturas do Exército Português, 4361/I-4-49-82).
Clique na imagem para a ampliar
|
|
|
|
Matemático e astrónomo, nasceu e morreu em Lisboa, sendo filho de Miguel António Ciera, matemático italiano encarregado pelo governo português da demarcação topográfica dos territórios da América do Sul, e de mãe portuguesa. Foi lente da cadeira de astronomia e navegação na Academia Real de Marinha, sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa e membro fundador, e sócio premiado (1803) da Sociedade Real Marítima.
Iniciou em 1790, sob o impulso de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, a triangulação geral de Portugal, tendo em vista a construção da carta do Reino e a medição do grau de meridiano, este na sequência dos importantes trabalhos que haviam começado em França para o estudo da forma da Terra. Embora ainda incompletos e insuficientes, os trabalhos geodésicos dirigidos por Ciera marcaram o início de uma etapa nova na Cartografia portuguesa, vulgarmente apelidada de Cartografia moderna. A partir daí torna-se possível construir mapas com maior rigor de posicionamento, o que aliado a outras inovações, nomeadamente rigor e expressividade na representação do relevo, modificará por completo as imagens do País.
Nas primeiras expedições geográficas, realizadas em 1790 e 1791, percorreu o País de Sul para Norte, escolhendo os pontos mais relevantes do território nacional e efectuando simultaneamente observações de rumos com a bússola, que ele próprio descreveu num relatório intitulado Viagem geográfica e astronómica pelo Reino de Portugal para a construção da carta topográfica e determinação do grau de meridiano. No Outono de 1791, em companhia de oficiais espanhóis, estendeu as suas observações à Galiza. Desses primeiros reconhecimentos resultou a Carta dos pontos da série de triângulos para a medida do grau do meridiano entre os paralelos de 37º e 45º 15’ de latitude N..., onde surge delineada a primeira rede geodésica portuguesa. Com ele participariam, desde o início, Carlos Frederico Bernardo de Caula, o oficial que mais trabalhou nestas triangulações a seguir ao próprio Ciera, e Pedro Folque.
|
|
|
|
|
|
Veja aqui a primeira expedição de Ciera, realizada entre 10 de Outubro e 10 de Novembro de 1790, animada.
Clique nas imagens para para ver as animações
|
|
Esquema das triangulações de Ciera, assinado pelo próprio, resultante das primeiras expedições de reconhecimento realizadas em 1790-91 (Direcção de Infra-Estruturas do Exército Português, 4361/I-4-49-82), e configuração actual da mesma área (animação a vermelho).
|
|
|
|
Em 1793 fez o ensaio de medição da base geodésica Batel-Montijo mas as primeiras réguas de que serviu e a pouca confiança nos resultados levaram-no a repetir as medições, no ano seguinte, utilizando agora as réguas inventadas por José Monteiro da Rocha (4 réguas, cada uma com 3 braças de comprimento). O valor obtido para esta pequena base de verificação foi de 4785,15 braças (cerca de 10,5 km), um pouco diferente do resultado a que chegariam, cerca de 40 anos depois, Pedro e Filipe Folque, pai e filho (4787,941208 braças). Em 1796 dirigiu os trabalhos de medição de uma grande base geodésica na Charneca da Barranha, conhecida por Buarcos-Monte Redondo, locais onde se situavam os seus extremos (cerca de 34 km). Com base nesta distância e nos ângulos dos vários vértices dos triângulos se poderia ficar a conhecer, com exactidão, a posição de todos os pontos da rede de triangulação, servindo a base Batel-Montijo para verificação dos erros. Sobre essa rede, com triângulos ainda muito grandes, se apoiaria a carta topográfica por ele já idealizada.
Quando Ciera iniciou estas medições, recorreu a todas as repartições públicas para obter o padrão exacto da braça portuguesa de 10 palmos. Dada a incerteza e a variedade que encontrou, resolveu compor uma medida, chamada braça de Ciera (1 braça = 2,1980 metros), que estivesse em razão finita com alguma conhecida na Europa, tendo utilizado a toesa da Academia Real das Ciências de Lisboa e considerado 25 toesas equivalentes a 22 braças. A toesa-padrão, existente na Academia, foi feita em Londres, aferida pela da Academia das Ciências de Paris e remetida para Lisboa em 1787.
A partir de 1793 começou também a fazer observações de ângulos com o círculo repetidor de Adams, mandado construir em Inglaterra, que permitia já aproximações ao segundo. Mas tendo em conta que estas medições não abrangeram todos os ângulos, por terem durado apenas alguns anos, e pelo número muito reduzido de triângulos, cujos sinais estavam colocados em média a 100 km de distância e, portanto, de difícil visibilidade, os trabalhos de Ciera eram ainda muito deficientes. Por isso, ele diria em 1803, pouco tempo antes do governo decretar a suspensão dos trabalhos: “tendo sido interrompidas [as operações geodésicas] principalmente pela guerra, faltam para o Norte do Caramulo 2 ou 3 pontos até à Galiza. Os três ângulos de cada triângulo não têm sido observados, muitos só o foram com um teodolito ordinário, alguns mesmo sem sinais, de sorte que os lados calculados não são mais do que aproximações, que serviram para as reduções ao centro. Logo depois das primeiras viagens, feitas para a escolha dos pontos, foi fácil de ver que as extremidades do Reino se poderão ligar somente com 5 triângulos, mas estas operações, tendo por principal objecto a construção da carta do país, o menor número de triângulos não era o que mais convinha e assim, sem multiplicar demasiadamente o número de pontos, adoptámos uma espécie de partido médio. (...) Será fácil para o futuro continuar os triângulos até ao mar do Norte da Galiza: uma pequena série de triângulos pelo Norte da Espanha ligará os nossos triângulos com os da França e os observatórios de Greenwich, Paris e Lisboa ficarão então determinados por operações geodésicas”.
Na realidade, em finais do século XVIII, a rede compreendia já um número considerável de pontos mas não ultrapassava a Serra do Caramulo e da Estrela para Norte. Também haviam sido observados muitos pontos ao longo da costa, assim como se triangulara a barra de Lisboa. Mas as dificuldades destes empreendimentos já se faziam sentir.
O dealbar do século seguinte trouxe, finalmente, o começo dos trabalhos da carta geral do Reino, apoiada numa rede mais densa de triângulos secundários, cujos ângulos foram observados com o teodolito. Esta carta realizada, entre os anos de 1800 e 1804, por engenheiros militares sob a sua direcção, tinha menos de duas dezenas de folhas quando os trabalhos foram suspensos, cobrindo uma pequena área a Norte de Lisboa, desde Odivelas até próximo de Sintra. Essas folhas, em esboço, corresponderam à primeira materialização do grande sonho da Cartografia topográfica portuguesa dos séculos XIX e XX, nunca completamente concretizado: a realização de uma série topográfica detalhada 1:10 000.
A situação dos trabalhos geodésicos empreendidos por Ciera ficaria sintetizada na Carta dos principais triângulos das operações geodésicas de Portugal (ca. 1:1 800 000, 1803), que parece ter sido a única impressa pela Sociedade Real Marítima, sob a direcção de Luís André Dupuis, chefe dos gravadores e desenhadores. Levada para Londres, seria furtivamente traduzida e editada por Arrowsmith.
Suspensos os trabalhos por ordem do governo em Abril de 1804, estes só seriam retomados com dificuldades em 1835, agora sob a direcção de Pedro e Filipe Folque. Essa longa interrupção, a que inicialmente não foi estranha a situação financeira do País e o abandono das funções governativas do seu principal impulsionador, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, arrastar-se-ia, afinal, praticamente por toda a metade desse século. Com ela se perdeu irremediavelmente parte dos trabalhos de Ciera.
Académico eminente, colaborou ainda com Custódio Vilas Boas na publicação, em português, do Atlas celeste de Flamsteed e escreveu vários trabalhos da sua especialidade, a astronomia, alguns dos quais publicados nas Memórias da Academia das Ciências. Ao morrer, a 6 de Abril de 1814, deixou alguns outros testemunhos da sua intensa actividade, entre mapas, notas e memórias.
Bibliografia
DIAS, Maria Helena “As explorações geográficas dos finais de Setecentos e a grande aventura da Carta Geral do Reino de Portugal”. Revista da Faculdade de Letras: Geografia. Porto: Universidade do Porto. I série, vol. XIX (2003), p. 383-396.
FOLQUE, Filipe - Memoria sobre os trabalhos geodesicos executados em Portugal. Lisboa: Academia Real das Sciencias, 1841. Vol. I.
FOLQUE, Filipe - Rapport sur les travaux géodésiques du Portugal e sur l'état actuel de ces mêmes travaux pour être présenté à la Commission Permanente de la Conférence Internationale. Lisbonne: Imprimerie Nationale, 1868.
MENDES, H. Gabriel “Francisco António Ciera, renovador da Cartografia portuguesa”. Geographica. Lisboa: Sociedade de Geografia de Lisboa. Vol. I, nº 3 (1965), p. 11-25.
|
|