José Morgado (1921-2003) [1]


José Morgado nasceu a 17 de Fevereiro de 1921, em Pegarinhos, a aldeia trasmontana da região duriense que era a capital do universo como, com orgulho e ironia provocatória, gostava de referir. Fez a escola primária em Pegarinhos, e o primeiro e segundo anos do liceu em Favaios, que fica a uns 19Kms da sua aldeia natal. Não se tendo inscrito no terceiro ano do liceu, por a família não poder arcar com as despesas necessárias, já que a localidade mais próxima onde o poderia fazer era Vila Real, a uns 60Kms de Pegarinhos, foram alguns dos professores que se encarregaram de tratar pessoalmente de garantir que o adolescente José Morgado prosseguisse os seus estudos, pois tinha-se revelado já um aluno excepcional, não apenas nesta ou aquela disciplina, mas em todas, como escreve aquele que seria o seu professor de Filosofia em Vila Real, Sant’anna Dionísio, em [4, pp. 180–181], onde relata esta historia. E acrescenta:

O rapaz [...] foi, conforme se previa, um dos mais destacados para não dizer dos mais notáveis estudantes que teriam passado pelos bancos do velho liceu. Nós mesmo, em dois anos lectivos consecutivos, o leccionamos na disciplina de Filosofia e com segurança podemos testemunhar a seriedade das suas capacidades de inteligência e trabalho. Foi, nessa geração escolar, o mais distinto aluno do Liceu, tendo concluído o curso complementar de Ciências com a mais elevada qualificação que a escala valorativa, convencional, entre nós o permitia e permite. Hoje é professor de Matemática em uma Universidade do Brasil: a Universidade do Recife.


José Morgado
José Morgado dedicou grande parte da sua carreira de investigação à Teoria de Reticulados, à Teoria de Grupos e à Teoria dos Números.

Embora o texto de Sant’anna Dionísio, escrito em 1970, não refira explicitamente o nome de José Morgado, é claro, pela última frase, a quem se refere. De acordo com a família, ainda enquanto estudante aproveitava os períodos de férias para dinamizar actividades culturais na sua aldeia natal, nomeadamente representações teatrais em que ele próprio era produtor, encenador e actor. Essa vocação humanista foi-se desenvolvendo ao longo de toda a sua vida e, segundo o seu filho Paulo, este nunca encontrou nenhum assunto de que o seu pai não gostasse.

José Morgado fez os seus estudos superiores na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, tendo-se licenciado em Ciências Matemáticas no ano de 1944. Além de serem anos de guerra, o período em que foi estudante na Universidade foi também um momento singular na história da Ciência e da Matemática em Portugal. O grande obreiro da verdadeira revolução ao que então teve lugar foi António Aniceto Ribeiro Monteiro, que fundou em 1937 a única revista sobrevivente destinada à publicação de trabalhos de investigação em Matemática, a Portugaliæ Mathematica [2], e impulsionou a criação da Gazeta de Matemática, da Sociedade Portuguesa de Matemática, do Centro de Estudos Matemáticos de Lisboa e da Junta de Investigação Matemática.


Seguindo o exemplo de António Monteiro, Ruy Luís Gomes fundou em 1941 o Centro de Estudos Matemáticos do Porto onde António Monteiro foi chamado a colaborar logo nas suas primeiras actividades.

Foi em todo este contexto de uma geração verdadeiramente excepcional em toda a história da Matemática em Portugal que José Morgado estudou e conviveu. Foram anos cheios de actividade e entusiasmo a que a repressão do Estado Novo veio por termo. Nas palavras de José Morgado:


Estas actividades funcionavam no Laboratório de Física da Faculdade de Ciências de Lisboa, mas [...] o fascismo desencadeou, em 1947, uma grande ofensiva contra os trabalhadores científicos e contra as universidades.


Começa aqui um longo interregno na vida de José Morgado durante o qual, segundo o seu Curriculum Vitæ,

Entre o seu afastamento do ensino oficial em 1947 e a sua partida para o Brasil em 1960, como professor contratado, viveu de lições particulares de Matemáticas Gerais, Cálculo Infinitesimal, Álgebra, Geometria Descritiva, Geometria Projectiva e outras disciplinas matemáticas, para estudantes do Instituto Superior de Agronomia, do Instituto Superior Técnico e da Faculdade de Ciências de Lisboa, até Outubro de 1958, tendo, em seguida, fixado a sua residência no Porto, onde deu lições particulares para estudantes da Faculdade de Economia e da Faculdade de Ciências do Porto, desde Novembro de 1958 até Dezembro de 1959.


Foi talvez nesta longa experiência de contacto directo com estudantes que se desenvolveram as notáveis qualidades pedagógicas de José Morgado e que desde logo o tornaram um explicador popular como mais tarde o viriam a tornar um professor excepcional. Segundo a sua viúva, Dra. Maria Helena Vinhas Novais, estes 13 anos de actividade docente particular foram interrompidos por períodos na prisão com o objectivo de coarctar a sua actividade política. O que ganhava como explicador não só lhe permitia viver com algum desafogo como pagar as dívidas contraídas durante os períodos de reclusão.

Foi na prisão que escreveu o segundo trabalho que consta da sua lista de publicações [12], o que se apresenta como o primeiro volume de um livro sobre reticulados, publicado pela Junta de Investigação Matemática em 1956. Trata-se, provavelmente, das notas de um curso que gostaria de ter dado.

Como diz no Prefácio,

Como as matérias aqui versadas não puderam ser discutidas em lições ou colóquios de Matemática, é natural que o leitor encontre muitas deficiências e obscuridades, tantas mais quanto é certo que grande parte deste volume foi escrita num momento em que nos era completamente impossível o acesso às Bibliotecas do nosso País para consulta de livros e revistas, bem como o contacto com outros estudiosos.

Contava mais tarde o autor que, estando ele, Ruy Luís Gomes e outros activistas políticos na prisão, juntamente com presos comuns, estes, normalmente ruidosos, impunham por vezes o silêncio de modo a que os “professores” se pudessem dedicar à investigação. Sobre este trabalho citamos o testemunho de Graciano de Oliveira [25]

Desde que ouvi o nome de José Morgado até me encontrar com ele mediaram alguns anos. Devo ter ouvido pela primeira vez o seu nome, se não me falha a memória, quando andava no primeiro ano da Faculdade. Ouvi falar dele e de que estaria, ou teria estado, na cadeia e que, como eu, estudava Matemática. Pouco depois caiu-me nas mãos uma obra de José Morgado intitulada Reticulados. [...] Nesse livro travei conhecimento com o axioma de escolha que me surpreendeu e deu muito que pensar. . . Nunca mais esqueci estes factos. . . Numa época em que a investigação era quase desconhecida em Portugal, fiquei a admirar José Morgado para sempre.

Passada meia dúzia de anos, já no Recife, para onde se viu forçado a emigrar em 1960 para poder continuar a trabalhar em Matemática, viria a publicar as notas [17] de uma série de lições de introdução à teoria dos reticulados no âmbito de um seminário na Universidade do Ceará, notas estas que contêm alguns resultados originais.

Sobre a importância do trabalho de investigação de José Morgado, pronunciou-se em termos altamente elogiosos aquele que foi quem o introduziu no mundo da Álgebra, o seu professor António Almeida Costa. [3] As seguintes citações são extraídas de um parecer elaborado por aquele professor em Abril de 1974 recomendando a contratação de José Morgado pela Universidade do Porto [4]. Depois de referir-se a José Morgado como

algebrista eminente, sem dúvida um dos maiores se não o maior dos algebristas portugueses

e de proceder a apreciações detalhadas sobre trabalhos concretos, conclui

O extraordinário labor do Prof. José Morgado durante dezenas de anos na disciplina de Álgebra creditam-no, conforme dissemos acima, como um dos grandes algebristas portugueses. A sua entrada como catedrático em qualquer Escola de ensino superior do País, onde Álgebra faça parte do elenco das respectivas matérias, só pode honrar a Escola que o receber. O Prof. José Morgado não beneficiará do prestígio da Escola; pelo contrário dar-lhe-á prestígio.


Como professor, José Morgado destacou-se pela sua dedicação, pela clareza da exposição, pelo permanente diálogo com os alunos, pela motivação e dinâmica que caracterizavam as suas aulas. O seu trabalho de investigação desde 1960 parece estar frequentemente ligado à sua actividade docente, no sentido de ser influenciado por ela e de nela se reflectir. O seu pensamento sobre esta matéria transparece das reflexões que faz sobre o seu mestre Ruy Luís Gomes em [22, p. 4]. Cita o físico Louis de Broglie que questiona

Como falar [...] de uma oposição entre a investigação e o ensino, se cada uma destas actividades parece apelar para a outra e se são os mesmos homens que praticam uma e outra, como se uma verdadeira simbiose dessas actividades fosse indispensável?

A influência de Ruy Luís Gomes na sua formação, como matemático, como docente e como cidadão, parece ter sido muito profunda. Revela-o por exemplo ainda no artigo [22, p. 6] quando afirma

[...] quando os estudantes da Licenciatura em Matemática, daquele tempo, tomavam contacto com as aulas de Física Matemática, sentiam-se num mundo escolar diferente. Em vez daquelas exposições dogmáticas (ou quase dogmáticas) que até então tinham recebido, assistiam agora a exposições, aparentemente talvez menos seguras, talvez com algumas hesitações, mas exposições dialogadas e entusiásticas, exposições cheias de vida, que suscitavam problemas, exposições humanizadas, em que era patente a ausência de dogmatismo, em que era patente a preocupação de ensinar a pensar.


Mais adiante, acrescenta:

Nas aulas de Física Matemática de Ruy Luís Gomes não se tinha a sensação de assistir à exposição de teorias, onde já tudo está feito, teorias prontas e acabadas, enfim, teorias envelhecidas!... Muito pelo contrário, tinha-se a sensação de assistir à exposição de teorias ainda em formação, onde havia muito que fazer e, até uma vez por outra, tinha-se a sensação de se estar assistindo ou participando no crescimento ou melhoramento das teorias expostas.


Citando Ruy Luís Gomes e Luís Neves Real [8, p. XII], que por sua vez citam António Monteiro [5], José Morgado apresenta uma afirmação que se parece ter tornado divisa que adoptou durante toda a sua vida académica:

[...] nenhum professor poderá iluminar as suas lições com cores vivas e profundas, se não tiver vivido os problemas que trata, se não tiver investigado na disciplina que professa.

Também no campo da política, Ruy Luís Gomes e José Morgado seguiram caminhos próximos [22, p. 17]: [6]

Ruy Luis Gomes iniciou a sua luta política contra o fascismo, no plano legal, exactamente no dia 8 de Outubro de 1945. Assistiu nesse dia à primeira sessão do Movimento de Unidade Democrática (MUD) [...], em Lisboa.
Só podia assistir a essa sessão quem fosse portador de convite. Conseguimos obter convites no escritório do advogado democrata Dr. Gustavo Soromenho.


Depois de ter desempenhado um papel fundamental, juntamente com Ruy Luís Gomes, na consolidação das actividades matemáticas na Universidade Federal do Pernambuco, no Recife, onde trabalhou durante 14 anos,

José Morgado regressou a Portugal no Verão a seguir à Revolução de 25 de Abril de 1974. Nesse mesmo ano, em 4 de Outubro, foi reintegrado no lugar de assistente além do quadro do Instituto Superior de Agronomia e, em 7 de Novembro, foi nomeado, por convite e por dois anos, professor catedrático do Grupo de Matemática Pura da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, lugar em que seria nomeado definitivamente em 24 de Julho de 1979. Jubilado em 17 de Fevereiro de 1991, por atingir o limite de idade para o exercício do cargo, regeu ainda disciplinas de opção durante mais 7 anos lectivos.

Publicou pelo menos 124 artigos de investigação, de história e de divulgação matemática, dos quais 89 foram recenseados na revista Zentralblatt. O seu trabalho científico reparte-se, essencialmente, em 3 áreas: Teoria de Reticulados, Teoria de Grupos e Teoria dos Números.

José Morgado faleceu no Porto a 8 de Outubro de 2003.



Jorge Almeida e António Machiavelo



Notas

1 - Este texto foi adaptado de: "José Morgado: in memoriam", Boletim da SPM, 50 (2004), 1-18.

2 - Segundo consta do prefácio do primeiro volume da Portugaliæ Mathematica, redigido por António Monteiro, a primeira revista portuguesa consagrada exclusivamente às Ciências Matemáticas foi o Jornal de Sciencias Mathematicas e Astronomicas, fundado, em 1877, pelo ilustre matemático Francisco Gomes Teixeira, de que foram publicados 14 volumes e que foi continuado em 1905 pelos Annaes Scientificos da Academia Polytecnica do Porto, publicados ainda sob a direcção do mesmo geómetra, já sem o carácter de revista dedicada exclusivamente à Matemática.

3 - Como professor extraordinário da Secção de Matemática da Faculdade de Ciências do Porto, no início da década de 1940, nas palavras de José Morgado, “O programa de Almeida Costa tinha em atenção o facto de não haver estudantes com grande interesse em Mecânica Celeste e, por isso, não incluía muitos tópicos de Mecânica Celeste propriamente dita. Almeida Costa preocupou-se sobretudo em nos falar da evolução da Mecânica e formulação dos seus princípios. [...] Alternando com as aulas de Mecânica e Física, Almeida Costa tratava habitualmente alguns temas de Álgebra e de Análise. Num tempo em que, na Licenciatura em Matemática, não havia propriamente uma cadeira de Álgebra, era assim que, pela mão de Almeida Costa, travávamos contacto (quase “clandestinamente”) com a Álgebra Abstracta.” [19].

4 - Arquivo do Centro de Matemática da Universidade do Porto.

5 - Os objectivos da Junta de Investigação Matemática, palestra radiofónica de Maio de 1944.

6 - Segundo a notícia de falecimento de José Morgado que consta da página web http://www.porto.pcp.pt, o seu afastamento da carreira universitária terá sido consequência da “participação numa das reuniões da criação do MUD”.




Referências

[1] José Ribeiro Albuquerque, Duas demonstrações dum mesmo facto, Gaz. Mat. 16 (1943), 3–5.

[2] George Berzsenyi, Adventures among Pt-sets, Quantum Magazine (1991), no. Mar/Apr.

[3] Joaquim Barradas Carvalho, Os quadros Universitários, Portugal Democrático 85 (1964).

[4] Sant’anna Dionísio, Ares de Trás-os-Montes, Lello & Irmão, 1977.

[5] Andrej Dujella, Diophantine m-tuples, web page: http://web.math.hr/~duje/dtuples.html.

[6] Diophantine quadruples for squares of Fibonacci and Lucas numbers, Portugal. Math. 52 (1995), 305–318.

[7] There are only finitely many Diophantine quintuples, J. Reine Angew. Math. 566 (2004), 183–214.

[8] Ruy Luís Gomes and Luís Neves Real, António Aniceto Monteiro e o C. E. M. do Porto (1941/1944), Portugal. Math. 39 (1980), IX–XIV.

[9] António Monteiro and Hugo Ribeiro, L’opération de fermeture et ses invariants dans les systèmes partiellement ordonnés, Portugal. Math. 3 (1942), no. 171-184.

[10] António A. Monteiro, Sur les algèbres de Heyting symétriques, Portugal. Math. 39 (1980), 1–237.

[11] José Morgado, Recordando Hugo Ribeiro, Palestra realizada na inauguração do Colóquio Internacional de Lógica, em memória de Hugo Ribeiro, 27–29/4/1989, realizado em Lisboa, no Instituto Superior Técnico.

[12] Reticulados (Cap. I - sistemas parcialmente ordenados), 1956, Junta de Investigação Matemática, Porto.

[13] Some results on closure operators of partially ordered sets, Portugal. Math. 19 (1960), 101–139.

[14] Note on the automorphisms of the lattice of closure operators of a complete lattice, Nederl. Akad. Wetensch. Proc. Ser. A 64 = Indag. Math. 23 (1961), 211–218.

[15] Quasi-isomorphisms between complete lattices, Portugal. Math. 20 (1961), 17–31.

[16] Some remarks on quasi-isomorphisms between finite lattices, Portugal. Math. 20 (1961), 137–145.

[17] , Introdução à Teoria dos Reticulados, Textos de Matemática, no. 10 e 11, Instituto de Matemática, Recife, 1962.

[18] Generalization of a result of Hoggatt and Bergum on Fibonacci numbers, Portugal. Math. 42 (1983/84), 441–445.

[19] Homenagem ao Prof. Almeida Costa, J. Mat. Elementar 81 (1988), 5,8,10.

[20] Hugo Baptista Ribeiro, matemático português que só pôde ensinar numa Universidade portuguesa depois do 25 de Abril, Bol. Soc. Port. Mat. 12 (1989), 31–42, Incluído também em “Textos sobre Lógica em Portugal” (pp. 149-156), Colóquio de Lógica à memória de Hugo Ribeiro, em 27–29/4/1989.

[21] Note on the Chebyshev polynomials and applications to the Fibonacci numbers, Portugal. Math. 52 (1995), 363–378.

[22] Homenagem ao Professor Ruy Luis Gomes, Bol. Soc. Port. Mat. 35 (1996), 1–24.

[23] Leopoldo Nachbin, The influence of António A. Ribeiro Monteiro in the development of Mathematics in Brazil, Portugal. Math. 39 (1980), XV–XVII.

[24] Luís Neves Real, Testemunho de Luís Neves Real, Bol. Soc. Port. Mat. 8 (1985), 33–40, Número dedicado à memória de Ruy Luis Gomes.

[25] Graciano de Oliveira, José Morgado (1921–2003), Gaz. Mat. 146 (2004), 5–6.

[26] Eduardo L. Ortiz, Professor António Monteiro and contemporary Mathematics in Argentina, Portugal. Math. 39 (1980), XIX–XXXII.

[27] Hugo Ribeiro, Sobre o treino de estudo dos nossos professores, Gaz. Mat. 19 (1941), 6–8.

[28] , Sobre a índole do ensino da Matemática em Zurique, Gaz. Mat. 26 (1945), 17–19.

[29] , Actuação de António Aniceto Monteiro em Lisboa entre 1939 e 1942, Portugal. Math. 39 (1980), V–VII.

[30] Gheorghe Udrea, A problem of Diophantos-Fermat and Chebyshev polynomials of the second kind, Portugal. Math. 52 (1995), 301–304.

[31] Morgan Ward, The closure operators of a lattice, Ann. of Math. (2) 43 (1942), 191–196.

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