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Macário estava então na plenitude do amor e da alegria.
Via o fim da sua vida preenchido, completo, radioso. Estava quase sempre em casa da noiva, e um dia andava-a acompanhando, em compras, pelas lojas. Ele mesmo lhe quisera fazer um pequeno presente, nesse dia. A mãe tinha ficado numa modista (1), num primeiro andar da Rua do Ouro, e eles tinham descido, alegremente, rindo, a um ourives que havia em baixo, no mesmo prédio, na loja.
O dia estava de Inverno, claro, fino, frio, com um grande céu azul-ferrete, profundo, luminoso,
consolador.
- Que bonito dia! - disse Macário.
E com a noiva pelo braço, caminhou um pouco, ao comprido do passeio.
- Está! - disse ela. - Mas podem reparar, nós sós...
- Deixa, está tão bom...
- Não, não.
E Luísa arrastou-o brandamente para a loja do ourives.
Estava apenas um caixeiro, trigueiro(2), de cabelo hirsuto (3).
Macário disse-lhe:
- Queria ver anéis.
- Com pedras - disse Luísa - e o mais bonito.
- Sim, com pedras - disse Macário. - Ametista, granada. Enfim, o melhor.
E, no entanto, Luísa ia examinando as montras forradas de veludo azul, onde
reluziam as grossas pulseiras cravejadas, os grilhões, os colares de camafeus (4), os anéis de armas, as finas alianças, frágeis como o amor, e toda a cintilação da pesada ourivesaria.
- Vê, Luísa - disse Macário.
O caixeiro tinha estendido, na outra extremidade do balcão, em cima do vidro da montra, um reluzente espalhado de anéis de ouro, de pedras, lavrados, esmaltados; e Luísa, tomando-os e deixando-os com as pontas dos dedos, ia-os correndo e dizendo:
- É feio. É pesado. É largo.
- Vê este - disse-lhe Macário.
Era um anel de pequenas pérolas.
- É bonito - disse ela. - É lindo!
- Deixa ver se serve - disse Macário.
E tomando-lhe a mão, meteu-lhe o anel devagarinho, docemente, no dedo, e ela ria, com os seus brancos dentinhos finos, todos esmaltados.
- É muito largo - disse Macário. - Que pena !
- Aperta-se, querendo. Deixe a medida. Tem-no pronto amanhã.
- Boa ideia - disse Macário - sim senhor. Porque é muito bonito. Não é verdade? As pérolas muito iguais, muito claras. Muito bonito! E estes brincos? - acrescentou, indo ao fim do balcão, a outra montra. - Estes brincos com uma concha?
- Dez moedas - disse o caixeiro.
E, no entanto, Luísa continuava examinando os anéis, experimentando-os em todos os dedos, revolvendo aquela delicada montra, cintilante e preciosa.
Mas, de repente, o caixeiro fez-se muito pálido, e afirmou-se em Luísa, passando vagarosamente a mão pela cara.
- Bem - disse Macário, aproximando-se - então amanhã temos o anel pronto. A que horas?
0 caixeiro não respondeu e começou a olhar fixamente para Macário.
- A que horas?
- Ao meio-dia.
- Bem, adeus - disse Macário. E iam sair. Luísa trazia um vestido de lã azul, que arrastava um pouco, dando uma ondulação melodiosa ao seu passo, e as suas mãos pequeninas estavam escondidas num regalo(5) branco.
- Perdão! - disse de repente o caixeiro.
Macário voltou-se.
- 0 senhor não pagou.
Macário olhou para ele gravemente.
- Está claro que não. Amanhã venho buscar o anel, pago amanhã.
- Perdão! - disse o caixeiro. - Mas o outro...
- Qual outro? - disse Macário com uma voz surpreendida, adiantando-se para o balcão.
- Essa senhora sabe disse o caixeiro. - Essa senhora sabe.
Macário tirou a carteira lentamente.
- Perdão, se há uma conta antiga...
O caixeiro abriu o balcão, e com um aspecto resoluto:
- Nada, meu caro senhor, é de agora. É um anel com dois brilhantes que aquela senhora leva.
- Eu! - disse Luísa, com a voz baixa, toda escarlate.
- Que é? Que está a dizer?
E Macário, pálido, com os dentes cerrados, contraído, fitava o caixeiro colericamente.
O caixeiro disse então:
- Essa senhora tirou dali um anel. - Macário ficou imóvel encarando-o. - Um anel com dois brilhantes. Vi perfeitamente. - O caixeiro estava tão excitado, que a sua voz gaguejava, prendia-se espessamente.- Essa senhora não sei quem é. E tirou-o dali...
Macário, maquinalmente, agarrou-lhe no braço, e voltando-se para Luísa, com a palavra abafada, gotas de suor na testa, lívido:
- Luísa, dize... - Mas a voz cortou-se-lhe.
- Eu... - disse ela. Mas estava trémula, assombrada, enfiada, descomposta.
E tinha deixado cair o regalo ao chão.
Macário veio para ela, agarrou-lhe no pulso fitando-a: e o seu aspecto era tão resoluto e tão imperioso, que ela meteu a mão no bolso, bruscamente, apavorada, e mostrando o anel:
- Não me faça mal - disse, encolhendo-se toda.
- Macário ficou com os braços caídos, o ar abstracto, os beiços brancos; mas de repente, dando um puxão ao casaco, recuperando-se, disse ao caixeiro:
- Tem razão. Era distracção. Está claro! Esta senhora tinha-se esquecido. É o anel. Sim, sim, senhor, evidentemente... Tem a bondade. Toma, filha, toma. Deixa estar, este senhor embrulha-o. Quanto custa?
- Abriu a carteira e pagou.
Depois apanhou o regalo, sacudiu-o brandamente, limpou os beiços com o lenço, deu o braço a Luísa e dizendo ao caixeiro: «Desculpe, desculpe», levou-a, inerte, passiva, extinta e aterrada.
Deram alguns passos na rua. Um largo sol aclarava o génio feliz: as seges passavam, rolando ao estalido do chicote: figuras risonhas passavam, conversando: os pregões ganiam os seus gritos alegres: um cavalheiro de calção de anta fazia ladear o seu cavalo, enfeitado de rosetas; e a rua estava cheia, ruidosa, viva, feliz e coberta de sol.
- Macário ia maquinalmente, como no fundo de um sonho. Parou a uma esquina. Tinha o braço de Luísa passado no seu; e via-lhe a mão pendente, ora de cera, com as veias docemente azuladas, os dedos finos e amorosos: era a mão direita, e aquela mão era a da sua noiva! E, instintivamente, leu o cartaz que anunciava para essa noite, «Palafoz em Saragoça».
De repente, soltando o braço de Luísa, disse-lhe baixo:
- Vai-te.
- Ouve!... - disse ela, com a cabeça toda inclinada.
- Vai-te. - E com a voz abafada e terrível: - Vai-te. Olha que chamo. Mando-te para o Aljube. Vai-te.
- Mas ouve, Jesus - disse ela.
- Vai-te! - E fez um gesto, com o punho cerrado.
- Pelo amor de Deus, não me batas aqui - disse ela, sufocada.
- Vai-te, podem reparar. Não chores. Olha que vêem. Vai-te!
E chegando-se para ela disse baixo:
- És uma ladra!
E voltando-lhe as costas, afastou-se, devagar, riscando o chão com a bengala.
À distância, voltou-se: ainda viu, através dos vultos, o seu vestido azul.
Como partiu nessa tarde para a província, não soube mais daquela rapariga loura.
Singularidades de Uma Rapariga Loura in Obras de Eça de Queiroz Contos, 20.ª edição, Livros do Brasil, Lisboa, s/d - pp. 30-34.
Vocabulário:
(1) modista: mulher que tem por ofício fazer vestuário de senhoras.
(2) um caixeiro trigueiro: moreno ( tom de pele, olhos e cabelos escuros).
(3) o cabelo estava hirsuto: o cabelo estava longo e espesso.
(4) os colares de camafeus: pedra preciosa, com duas camadas diferentes na cor, sobre uma das quais se lavrou uma figura em relevo, à qual serve de fundo a outra camada.
(5) as mãos escondidas num regalo branco: utensílio, geralmente em pele, em que se resguardam do frio as mãos. |
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