Por uma dessas
alongadas ruas do Porto, que sobe que sobe e não se
acaba, há-de encontrar-se um cruzamento alto, de
esquinas de azulejo, janelas de guilhotina, telhados de
ardósia em escama. Faltam razões para flanar por esta
rua, banal e comprida, a não ser a curiosidade por um
insólito dispositivo conhecido de poucos: os únicos
semáforos do mundo movidos a pedal, sobreviventes a
outros que ainda funcionavam na Guatemala, no início
dos anos setenta.
No
dobrar do século XIX, Gerard Letelessier, jovem
engenheiro francês, fracassou em Paris e em Lisboa,
antes de convencer um autarca do Porto de que inventara
um semáforo moderno, operado a energia eléctrica,
capaz de bem ordenar o trânsito de carroças de vinho,
carros de bois e landós da sociedade. A autoridade
gostou do projecto e das garrafas de Bordéus que o
jovem engenheiro oferecia. Os semáforos estiveram
ensejados para a Ponte, mas, de proposta em proposta
(sempre se tratava de uma implantação experimental),
acabaram na infrequentada Rua Fernão Penteado, na
intersecção com a travessa de João Roiz Castelo
Branco.
O
sistema é simples e, pode dizer-se com propriedade,
luminoso. Um homem pedala numa bicicleta erguida a dez
centímetros do chão por suportes de ferro. A corrente
faz girar um imã dentro de uma bobina. A energia gerada
vai acender as luzes de um semáforo, comutadas pelo
ciclista. Durante a Primeira Guerra foi introduzida uma
melhoria. Uma inspecção da Câmara concluiu que a roda
da frente era destituída de utilidade. Foi retirada.
Houve muitos candidatos ao
cargo de samaforeiro, embora um equívoco tivesse levado
à exigência de que os concorrentes soubessem andar de
bicicleta. A realidade corrigiu o dislate porque acabou
por ser escolhido um galego chamado Ramon, que era
familiar do proprietário dum bom restaurante e nunca
tinha pedalado na vida. Mas Ramon era esforçado,
cheio de boa vontade. A escolha foi acertada.
Durante
anos e anos o bom do Ramon pedalou e comutou. Por
alturas da segunda Grande Guerra foi substituído pelo
seu filho Ximenez, pouco depois da revolução de Abril
pelo neto Asdrúbal, e, um dia destes, pelo bisneto Paco.
A administração continua a pagar um vencimento
modesto, equivalente ao de jardineiro. Mas não é pelo
ordenado que aquela família dá ao pedal. É pelo amor
à profissão. Altas horas da madrugada, avô, neto e
bisneto foram vistos de ferramenta em riste a afeiçoar
pormenores. Fizeram questão de preservar a roda de trás
e opuseram-se quase com selvajaria a um jovem engenheiro
que considerou a roda dispensável, sugerindo que o
carreto bastasse.
Os transeuntes e motoristas do
Porto apreciam estes semáforos manuais, porque é
sempre possível personalizar a relação com o sinal.
Diz-se, por exemplo, «Ó Paco, dá lá um jeitinho!» e
o Paco, se estiver bem-disposto, comuta, facilita.
Acontece
que, mesmo à esquina, um primeiro andar vem sendo
habitado por uma família de médicos que dali faz
consultório. Pouco antes da instalação dos semáforos
a pedal, veio morar o Doutor João Pedro Bekett, pai de
filhos e médico singular. Chegou de Coimbra com boa
fama mas transbordava de espírito de missão. Andava
pelas ruas a interpelar os transeuntes: «Está doente?
Não? Tem a certeza? E essas olheiras, hã? Venha daí
que eu trato-o.» E nesta ânsia de convencer
atravessava muitas vezes a rua. O semáforo complicava.
Aproximou-se
do Ramon e bradou, severo: «A mim, ninguém me diz
quando devo atravessar uma rua. Sou um cidadão livre e
desimpedido.» Ramon entristeceu. Não gostava que
interferissem com o seu trabalho e, daí por diante,
passou a dificultar a passagem ao doutor. Era caso para
inimizade. E eis duas famílias desavindas. Felizmente,
nunca coincidiram descendentes casadoiros. Piora sempre
os resultados.
Ao
Dr. Pedro sucedeu o filho João, médico muito modesto.
Informava sempre que o seu diagnóstico era
provavelmente errado. Enganava-se, era um facto. Mas
fazia questão de orientar os pacientes para um colega
que desse uma segunda opinião. Herdou o ódio ao semáforo
e passava grande parte do tempo à janela, a encandear
Ximenez com um espelho colorido.
Já entre o jovem médico Paulo
e Asdrúbal quase se chegou a vias de facto. O médico
passava e rosnava «Sus, galego». E Asdrúbal, sem
parar de dar ao pedal: «Xó, magarefe!» Uma tarde,
Asdrúbal levantou mesmo a mão e o doutor encurvou-se e
enrijou o passo.
Este
Dr. Paulo era muito explicativo. Ouvia as queixas dos
doentes, com impaciência, e depois impunha silêncio e
começava: «As doenças são provocadas por vírus ou
por bactérias. No primeiro caso, chamam-se viróticas,
no segundo, bacterianas.» E estava horas nisto, até o
doente adormecer. Colegas maliciosos sustentavam que ele
praticava a terapia do sono. Mas a maioria dos doentes
gostava de ouvir explicar. Alguns até faziam perguntas.
Após a consulta, muito à puridade, o Dr. Paulo pedia
aos clientes que passassem pelo homem do semáforo e lhe
dissessem: «Arrenego de ti, galego!» Isto foi assim
com Asdrúbal e, mais recentemente, com Paco.
Há
dias, vinha do almoço o Dr. Paulo com uma
trouxa-de-ovos na mão, e já trazia entredentes o «arrenego!»
com que insultaria o semaforeiro, quando aconteceu o
acidente. Ao proceder a um roubo por esticão um jovem
que vinha de mota teve uns instantes de desequilíbrio,
raspou por Paco e deixou-o estendido no asfalto. Era
grave. O Dr. Paulo largou ódios velhos, não quis saber
de mais nada e dobrou-se para o sinistrado: «Isto, em
matéria de lesões, elas podem ser provocadas por três
espécies de instrumentos: contundentes, cortantes, ou
perfurantes.»
Uma
ambulância levou o Paco antes que o doutor tivesse
entrado no capítulo das «manchas de sangue».
Enganar-se-ia
quem dissesse que o semáforo ficou abandonado. Uma
figura de bata branca está todos os dias naquela rua,
do nascer ao pôr do Sol, a accionar o dispositivo,
pedalando, pedalando, até à exaustão. É o Dr. Paulo
cheio de remorsos, que quer penitenciar-se, ser útil,
enquanto o Paco não regressa.
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