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REGRESSO
À CÚPULA DA PENA [excerto]
Nisto, uma tropa de viajantes apressados,
ajoujados
de malas e sacos, atravessou o largo de corrida, a caminho da estação. Olhei o
relógio lá em cima, e conferi as horas no
pulso: «À 1.50 sai o rápido de Sintra», comentei. E dei um pulo. O
cavalheiro que, na mesa ao lado, se esforçava por ler nas entrelinhas do
jornal, sobressaltou de medo, receando talvez uma agressão. Paguei a despesa,
e, atrás do grupo, que já subia os degraus da entrada, deitei a correr através
do largo cheio de sol e de estrépito.
Fui direito à bilheteira:
― Sintra, ida e volta. Ainda apanho o rápido?
O empregado olhou o relógio e respondeu com
placidez:
― Tem cinco minutos.
Era então certo! Surpreendido e feliz, impaciente como há vinte anos com a
lentidão dos ascensores, subi a dois e dois a escadaria. Era como se tivesse
acertado com o número da sorte grande, um
júbilo estranho, esta certeza tão
minha de que alguma coisa continuava, um segredo só entre mim e o mundo do meu
regresso... Daí a momentos, encaixado por milagre na carruagem de
segunda, com
este grato sabor de fumarada na língua, tornei a ouvir o apito
nostálgico da
locomotiva, o mesmo de há... «Mas que seca!», pensei. «Deixe o que lá vai!
Hoje é hoje!»
Aqueles passeios a Sintra tinham sido sempre o meu regalo. Amava as hortas, as
praias, os toiros, o futebol: mas sempre que me apetecia fugir deste simulacro
de Inferno aberto em Céu ― Sintra comigo. Por lá andava todo o santo
dia, de chapéu na mão, assobio na boca, a boa sombra, Seteais, as fontes, almoço
no Lawrence (ou no Pombinha, conforme o
orçamento), depois os Capuchos, as ruínas,
a Pena... Cheguei mesmo a dormir uma noite, sozinho, nas ameias do Castelo dos
Mouros. Foi no Verão, não há memória dum Agosto assim tão quente. A coisa
mais extraordinária, nunca o hei-de esquecer, foi que o Sol se pôs no mesmo
instante em que a Lua rompeu, e vinha cheia! Um espectáculo como nunca vi
outro, nem sol da meia-noite, nem
auroras
boreais. Eram dois sóis, qual deles o
maior, qual o mais vermelho, suspensos no horizonte, em lados opostos do mundo.
Parecia uma alucinação ou um caso de espelhismo natural. Durante instantes
tive a ilusão dum «fenómeno» ou cataclismo: o universo parava, e ficava
retido entre aqueles dois bugalhos enormes de luz vermelha e
baça... Depois o
Sol afundou-se, e a Lua subiu, empalideceu, esfriou, fez-se uma lua de balada à
Soares de Passos. Enfim, lá fiquei essa noite, e por sinal que me fartei de
bater os queixos com frio, sem sobretudo, no Agosto mais quente de que rezam
lendas encantadas.
E aqui vou eu agora a caminho de Sintra, sem mais nem menos, só porque uma
tropa fandanga se lembrou de atravessar o largo, à hora a que dantes havia um rápido,
e eu ali sentado a remoer problemas na esplanada do Suisso! Olhando a paisagem
dura do Cacém, ocorreu-me esta pergunta estúpida: «Se ainda haverá cisnes
pretos no lago?»
Chegado a Sintra, desentorpeci as pernas andando até à vila. O que sempre me
atraía ali eram sobretudo as verduras, as sombras, as fontes, a paisagem, a
altitude. Postado agora na
arcaria ogival do Palácio Real, olhei o alto da
Pena, e quis ter asas para galgar os
penhascos,
roçar os cimos do arvoredo, ir
poisar naquelas torres e ameias dignas do Walt
Disney. Mas, com franqueza, nem
asas, nem pernas. Vista cá de baixo, da vila, a Pena pareceu-me um caso de
respeito, ninho de águias, rochedo mitológico, amontoado de
ciclopes exasperados, de garras
crispadas, a
agatanhar o céu. Como é que eu pude
outrora trepar aquilo a pé, depois da caminhada desde Lisboa, como cheguei a
fazer? E o que é que me atraía agora lá acima, que memória, que enamorado
pensamento, que secreto desejo, anseio de
galgar o
hiato do tempo,
desgarradora
saudade ou largueza de vistas? Porque era ali que a vontade me estava chamando.
Corri a tomar uma tipóia que envelhecia no largo, agarrada às
pilecas, e
mandei bater para a Pena. Não, nem
Seteais, nem Capuchinhos, nem sequer a Cruz
Alta: a Pena! Daí a pouco, perna cruzada, chapéu no regaço, assobio na boca,
a alma à larga, a brisa fresca no suor da calva ― por entre o gemer das
molas e o bufar das bestas gastas, eu trepava a serra das serras. Mandei parar
nas fontes e bebi, repetindo os gestos consabidos de quem refaz um velho
conhecimento ou pratica um ritual.
José Rodrigues Miguéis, Léah e Outras Histórias, Lisboa, Editorial Estampa,
1997 (11ª ed.)
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