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foto
de António Pedro Ferreira
NATAL
CHINÊS
A senhora Tung chegava
dois
dias antes da
consoada.
Costumava vê-la logo de manhã, com a irmã jardineira,
no pátio maior, a admirar as laranjeiras anãs nos
vasos de loiça. Via-a casualmente a contemplar,
embevecida, o presépio do convento. Encontrava-a por
fim à mesa.
A
senhora Tung viajava todos os anos da Formosa para
Macau, na época do Natal, a fim de festejar o
nascimento de Cristo na companhia da sua primogénita, a
irmã Chen-Mou.
Nesses
dias, com as meninas em férias, o refeitório do colégio
parecia maior e mais desconfortável: só eu e Miss Lu
nos sentávamos à mesa comprida das professoras. Daí a
presença da senhora Tung, que noutra ocasião passaria
talvez despercebida (estirada a sala entre pátios de
cimento e plantas verdes), se tornar nessa altura notável.
Baixa,
seca de carnes, de olhos atenciosos, pensativos, a
senhora Tung sorria constantemente, falava inglês,
gostava de comer, de fumar, de jogar ma-jong. As
criadas
cortejavam-na nos corredores, preparavam-lhe
pratos especiais, levavam-lhe chá ao quarto. Além de
ser mãe da subdirectora, tinha fama de rica e distribuía
moedas de prata a todo o pessoal na noite de festa.
Nessa
noite assistiam três freiras ao nosso jantar (a regra não
lhes permitia comer connosco): a directora, a
subdirectora e a mestra dos estudos. E muito
empertigada, segurando com ambas as mãos um tabuleiro
de laca coberto com um pano de seda, a senhora Tung
recebia-as à porta do refeitório, entregando
cerimoniosamente o presente à filha, que por sua vez o
oferecia à directora. Eram bolos de farinha fina
de arroz amassada com óleo de sésamo. Toda de
vermelho, de sapatos bordados e ganchos de jade no
cabelo, a senhora Tung, quando a superiora colocava o
tabuleiro dos bolos na mesa, dobrava-se quase até ao chão.
Rezava-se, depois. Para lá dos pátios, à porta da
cozinha, as criadas espreitavam, curiosas.
Nem
no primeiro, nem no segundo, nem no terceiro Natal que
passei em Macau, a senhora Tung era cristã, mas todos
os anos se nomeava catecúmena. A seguir ao jantar
falava-se nisso. A directora, uma francesa de mãos
engelhadas que noutros tempos frequentara a Universidade
de Pequim, perguntava em chinês formal quando era o
baptizado. Inclinando a cabeça para o peito, a senhora
Tung
balbuciava, indicando a irmã Chen-Mou. A filha...
a filha sabia. Talvez se pudesse chamar cristã pelo espírito,
mas o coração atraiçoava-a. O coração continuava
apegado a antigas devoções... Todavia, vestira-se de
gala para a festividade da meia-noite, tinha no quarto o
Menino Jesus cercado de flores, e a alma
transbordava-lhe de alegria como se cristã
verdadeiramente fosse.
Com
um sorriso meio
complacente
meio contrariado, a irmã
Chen-Mou
desconversava, passando a bandeja dos bolos à
superiora, que separava uns tantos para o convento. Os
restantes comê-los-iamos nós, ao fim da Missa do Galo,
com chocolate quente.
O
chocolate era a esperada surpresa da directora. A
senhora Tung chamava-lhe, em ar de
gracejo, «chá de
Paris». No fim das três missas vinham outra vez as três
freiras ao refeitório do colégio para trocarem
connosco o beijo da paz e nos oferecerem a tigela
fumegante do chocolate. Vinham e partiam logo (tarde de
mais para se demorarem), e Miss Lu, fanática
terceira-franciscana, sempre atenta aos passos das monjas, sorvia à pressa o líquido escaldante, como
quem cumprisse um dever, e saía atrás
delas.
Ficávamos,
assim, a senhora Tung e eu, uma em frente da outra. À
luz das velas olorosas do centro de mesa, os seus olhos
eram dois riscos
tremulantes. Sorríamos. Finalmente, o
reposteiro
ao fundo da sala
apartava-se. Uma das criadas
entrava, silenciosa. Servia-se vinho de arroz.
Creio
que o vinho de arroz figurava entre as bebidas proibidas
no colégio e que chegava ali por portas travessas. O
certo, contudo, é que ambas o bebíamos, a acompanhar
os bolos de sésamo, no grande e
deserto
refeitório, na
noite de Natal.
O
vinho de arroz queimava-me a garganta e fazia-me vir lágrimas
aos
olhos. Quanto à senhora Tung, saboreava-o devagar,
molhando nele o bolo, e, como mal provara o «chá de
Paris», bebia dois cálices.
Entretanto,
Aldegundes, a criada macaense mais antiga do colégio,
aparecia com as especialidades da terra: aluares,
fartes e coscorões, dizendo que aluá era
o colchão do Minino Jesus, farte
almofada, coscorão lençol. E eu traduzia em inglês
para a senhora Tung, que achava isto enternecedor e
gratificava
a velha generosamente.
Quando
por fim atravessávamos a cerca a caminho de casa, sob
uma lua branca, espantada, anunciadora do Inverno para a
madrugada, a senhora Tung abria-se em
confidências.
A
menina sabia... ― a «menina» era a irmã
Chen-Mou, a subdirectora do colégio ―, sabia que
ela continuava a venerar a Deusa da Fecundidade.
Tratava-se de uma pequena divindade, toda nua e toda de
oiro. Fora ela quem lhe dera filhos. Estéril durante
sete anos, a senhora Tung recorrera à sua
intercessão
divina quando o marido já se preparava para receber
nova esposa. Não podia portanto deixar de a amar. Toda
a felicidade lhe provinha daí, dessa afortunada hora em
que a deusa a escutara.
Parava
a meio do largo átrio
enluarado, de olhar
meditabundo,
mãos cruzadas no colo. E as palavras saíam-lhe lentas
e soltas, como se falasse sozinha.
...
E aquele mistério da virgindade de Nossa Senhora!
Virgem e mãe ao mesmo tempo... Não se lia no Génesis:
«O homem deixará o pai e a mãe para se unir a sua
mulher e os dois serão uma só carne?» Não era essa a
lei do Senhor? Porquê então a Mãe de Cristo diferente
das outras, num mundo de homens e de mulheres onde o
Filho havia de vir pregar o amor? A Deusa da
Fecundidade, patrona dos lares, operava milagres, sim,
mas racionalmente, atraindo a vontade do homem à da sua
companheira e exaltando essa atracção. Como o Céu
alagando a Terra na estação própria.
Retomávamos
a marcha em direcção aos nossos aposentos. Difícil
para mim responder às dúvidas da senhora Tung, nem ela
parecia esperar resposta. Mudava, rápida, de assunto,
aludindo
ao tempo, à viagem de regresso, às saborosas
guloseimas da criada macaísta.
Já
em casa, convidava-me a ir ver o seu presépio. O quarto
cheirava fortemente a
incenso. Em cima da cómoda, entre
flores, lá estava o Menino Jesus, de
cabaia
de seda
encarnada, sapatinhos de veludo preto, feições
chinesas.
Depois,
timidamente, a senhora Tung abria a gaveta... e surgia a
deusa.
O
Menino Jesus era de marfim. A Deusa da Fecundidade era
de oiro. O Menino, de pé, de um palmo de altura,
trajando ricamente. A deusa, sentada, pequenina, nua.
Os
olhos da senhora Tung atentavam nos meus, como se à
procura de compreensão, mas as suas palavras prontas (a
deter as minhas?) eram de
autocensura. Não, não devia
fazer aquilo. A filha
asseverara
que o Menino Jesus
entristecia, em cima da cómoda, por causa da deusa, na
gaveta. E quem sabia mais do que a filha ?
Eu
já sentia frio, apesar da aguardente de arroz. O
Inverno, ali, chegava de repente. A senhora Tung, no
entanto, tinha as mãos quentes e as faces
afogueadas.
Despedíamo-nos.
Eu sempre me apetecia dizer-lhe que estivesse sossegada,
que de certeza o Menino Jesus não havia de se
entristecer, em cima da cómoda, por causa da deusa, na
gaveta. Mas nunca lho disse nos três anos que passei o
Natal com ela.
Palpitava-me
que a senhora Tung se
enervava com o assunto. E que, de qualquer jeito, não
me acreditaria.
Maria
Ondina Braga, A China Fica ao Lado,
Lisboa, Panorama, 1968
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