Raul Proença
(1884-1941)
Raul Proença foi dos intelectuais mais activos e influentes durante as primeiras décadas deste século, sempre eivado de inabalável espírito democrático, mas profundamente crítico dos vícios do regime republicano e da corrupção generalizada a que se não mostrava capaz de pôr cobro.
A temática central de toda a sua obra, dispersa por centenas de artigos de revista e jornal, e em múltiplas cartas e manifestos é primacialmente ético-política, encontrando a sua razão de ser no esforço a que se entregou para arrostar de frente com o que considerava a nossa debilidade moral, na qual radicava a preocupante e dramática consciência de decadência do país. Assim, a linha de fundo que dá coerência a toda a sua obra é o socialismo democrático, a par da crítica da moral burguesa e de todas as soluções ditatoriais, de que se destaca a crítica muito activa ao integralismo lusitano e à emergência do fascismo na Europa, que viria a arrastar o continente para um totalitarismo niilista, destruindo a riqueza criadora da vida, em nome do exclusivismo.
Neste contexto interveniente e reformador, foi colaborador activo, primeiro, da Renascença Portuguesa, e depois, após a cisão que se seguiu à imposição por Pascoaes do saudosismo como essência do espírito do movimento, da Seara Nova, de que foi fundador. Como escreveu nos primeiros anos da sua actividade, atormentava-o uma atmosfera e um sentimento de mal-estar que era a primeira condição do «movimento» e do desejo de «alguma coisa». A causa já tinha sido diagnosticada pelos homens da Geração de 70: três séculos de educação jesuítica tinham matado as energias vivas e as forças íntimas que séculos antes nos colocaram a par da civilização mundial.
Daí a nossa configuração no início do século, traduzindo-se numa quase completa ausência de largueza de alma e de espírito solidário, matando à nascença a nossa capacidade de realização como povo, pois renunciando à liberdade, perderamos a dignidade nação e pátria.
Filosoficamente, definiu-se como idealista e realista, sem ver contradição na confluência dos termos, pois não lhe importava tanto o lado metafísico ou gnosiológico da questão, mas sobretudo a sua vertente prática, expressa nas instâncias ética e política. Realismo era a exigência do conhecimento integral das realidades com que o homem se debate, não admitindo que se definam soluções e planos de acção «fora desse conhecimento realista e objectivo», e distantes «da verdadeira natureza do homem e dos factos sociais». Foi por não os julgar realistas neste sentido que repudiou o comunismo, o anarquismo ou o integralismo, já por não emanarem da análise dos factos sociais, já por atentarem contra a natureza e dignidade do homem.
Quanto ao idealismo era a garantia de distanciamento perante o «realismo materialista», expresso em fórmulas de determinismo que repugnavam ao seu entendimento do progresso e da liberdade, e de uma moral de criadores. O essencial era nunca encarar os modos de ser e as formas da vida social como intransformáveis e dadas de uma vez por todas, como pretendeu em França a Action Française e entre nós os integralistas, seus sequazes. Estes, apesar do seu tão propagado apego aos valores espirituais do catolicismo, defendiam o fatalismo da hereditariedade e da história, sendo estas formas de «materialismo» que os fizeram aderir à doutrina da selecção e ao darwinismo social, negadores da dignidade humana. Por aqui se explica também a sua cruzada contra o conceito de tradição como factor de estagnação, pugnando contra os espectros que teimavam em nos acorrentar a uma mentalidade passadista e sem sentido de futuro e de criação. Nada se impunha ao seu espírito pelo simples facto de ter sido.
Realismo idealista porque o que melhor define a realidade é o progresso, a «criação continuada» de novos mundos portadores de sentido, negando a ditadura do Facto e afirmando que o mal não é irremediável. Realismo idealista porque não mata a esperança, e esperança não dos que esperam mas dos que agem, mas, também aí, dos que agem norteados por ideais sublimes, porque agir sem ideais nobres é aproximar o homem da animalidade, negando-o como ser cultural. Age-se em função de objetivos que o espírito idealiza como realizáveis, e assim - servindo-nos das suas palavras -, «a realidade como base, o idealismo como aperfeiçoamento e remate para uma realidade superior e melhor» definiam o conceito de uma filosofia ética e social.
Foi também por isso que se preocupou com a doutrina do eterno retorno, tendo-a estudado criteriosamente, não para a perfilhar mas para a repudiar nas suas funestas consequências, pois a encarava como o desenlace lógico de todos os determinismos, inimigos da concepção do homem como um ser livre, capaz de fixar fins que o espírito vai livremente realizando, fins que porventura se nos afigurariam utópicos, não esquecendo porém que uma das maiores provas da ingenuidade era não ter senso prático bastante para acreditar na eficácia das utopias.
A obra da razão era pois progressiva e lenta, desdobrando-se a cada passo nos seus corolários, o principal dos quais era o triunfo do direito sobre a força e da justiça sobre o privilégio. E foi também por ver o mundo como obra da razão que não aceitou o primado do intuicionismo e do anti-intelectualismo que ia triunfando entre os bergsonianos portugueses de expressão saudosista, tendo o cuidado de precisar que o seu racionalismo não defendia nenhuma espécie de divórcio entre a razão e o sentimento, mas que entendia a razão como a instância que permitia escolher, ordenar e valorizar os sentimentos, não havendo assim conflito entre razão e sentimento, mas, quando muito, entre sentimento e sentimento.
Foi por isso um humanista, encarando o humanismo não como um assunto mas como uma atitude, e se elogiava o ateísmo, por ser a moral sem prémio a que maior heroísmo exige, crendo na morte definitiva para fazer da vida a nossa eternidade, nem por isso deixou de se considerar filho do personalismo cristão, mas vendo em Deus não um ser transcendente que castiga e premeia, mas a afirmação dos valores sublimes da consciência. Respeitando a liberdade de cada um e recusando-se a admitir a existência em Portugal de uma «questão religiosa», que para si ecoava a intolerância, entendia que Cristo tinha existido, mas o que nunca existira verdadeiramente, por nunca ter sido posto em prática, fora o cristianismo no seu conteúdo verdadeiramente solidário.
O seu socialismo democrático fez também dele um crítico da moral burguesa, a moral do prazer e da ausência da dor que eleva e purifica, a moral da mediania onde confluiam a ferocidade egoísta dos poderosos e o desejo de estabilidade dos seus políticos, estiolando a educação e a escola pelos critérios de uma instrução prática, esquecendo que o mais prático de todos os sistemas ou modelos de educação é o que se revelar mais capaz para melhorar as almas dos homens, ensinando-lhes não a «jantar a vida» mas a «vivê-la», porque a moral por que lutou não era uma lição ascética de desprezo pela vida, fazendo-a triste e sem encanto.
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O grupo fundador da revista «Seara Nova», reunido em Abril de 1921 em casa do Sr. José Leal, no Coimbrão (Leiria). Da esquerda para a direita, de pé: pároco do Coimbrão (não pertencente ao grupo), Teixeira de Vasconcelos, Raul Proença e Câmara Reis; sentados: Jaime Cortesão, Aquilino Ribeiro e Raul Brandão
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Quanto ao seu programa político, e depois de reabilitar o valor do «político», distinguindo-o do «técnico», por caber àquele a nobreza da capacidade sintética e coordenadora, e por se não governar um país «como quem gere uma empresa ou uma roça», preocupou-se em defender um socialismo que se realiza dentro da ordem e dos métodos democráticos, nomeadamente no seio do parlamentarismo, nunca reconhecendo ao Estado qualquer poder absoluto sobre o indivíduo, razão por que repudiou o conceito de vontade-geral de Rousseau, por se sobrepor ao juizo individual de «cada um». O seu socialismo pugnava por uma intervenção progressiva e não abrupta e violenta do Estado na regulamentação das actividades, para pôr termo à anarquia económica e estabelecer uma maior justiça distributiva, não vendo na propriedade um direito absoluto, pois que exigia uma regulamentação que lhe retirasse o carácter soberano e irresponsável, impedindo-a de colidir, como tantas vezes sucedia, com o valor ético da personalidade e, consequentemente, com o maior bem da comunidade.
BIBLIOGRAFIA ACTIVA
«O determinismo e a apatia nacional», Alma Nacional, nº8, 1910
«O orgulho e a utopia», Alma Nacional, nº 18, 1910
«A Arte é Social?», A Águia, 1ª série, nº 2 e 3, 1910-1911
«A educação moral em Portugal», Alma Nacional, nº 6, 1910
«Ao Povo - A «Renascença Portuguesa», A Vida Portuguesa, nº 22, 1914
«A situação política», A Águia, nº 2, 2ª série, Fevereiro de 1912
«Da Ditadura à suspensão dos direitos políticos», A Águia, nº 43, 2ª série, Julho de 1915
«O fascismo e as suas repercussões em Portugal», Seara Nova, nº 77, Março de 1926
«A Ditadura - História e análise de um crime» Panfletos I, Lisboa, 1926
«Do Estado Absoluto e do Estado Liberal» Seara Nova, nº 231
«Palavras dum vencido» Alma Nacional, nº 23, 1910
«A filosofia de Epicuro e a concepção heróica da vida», Anais das Bibliotecas e Arquivos, nº 4, Out/Dez., 1920
«O problema religioso», Seara Nova, nº19, 3-11-1926
«Sobre a existência de Deus e a lealdade da consciência», Seara Nova, nº 40, 1925
«O Evangelho contra o Evangelho e o Mundo Cristão contra o Cristianismo», Seara Nova, nº 648, 1940
«O progresso e as doutrinas científicas», Seara Nova, nº 10, 1922
«Da defesa da Democracia (1ª parte)», Seara Nova, nº 182, 1929
«Os Letrados e a Democracia», Seara Nova, nº 126, 1928
«Sobre a teoria do eterno retorno», Seara Nova, nº 555, 1938
Antologia, 2 volumes, organização de António Reis, Lisboa, 1985.
BIBLIOGRAFIA PASSIVA (sendo muito escassa, destacam-se):
Sant'Anna Dionísio, O Pensamento Especulativo e Agente de Raúl Proença, Lisboa, 1949
Joel Serrão, «Aproximação do pensamento de Raúl Proença» Seara Nova, nº 1512, 1971
Sottomayor Cardia, «Raúl Proença e a responsabilidade do intelectual», Seara Nova, nº 1428, 1964
António Reis, «O pensamento filosófico de Raúl Proença», Prelo, nº13, 1986
Jacinto Baptista, Jaime Cortesão, Raúl Proença: Idealistas no Mundo Real, Lisboa, 1990.
Pedro Calafate
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