Época Medieval

Renascimento em Portugal

Sob o Signo das Luzes

A Filosofia Portuguesa do Séc. XIX
até à Proclamação da República
A Filosofia Portuguesa depois de 1910

Álvaro Ribeiro
(1905-1981)

Juntamente com José Marinho foi dos principais discípulos do magistério de Leonardo Coimbra na Faculdade de Letras do Porto, sendo considerado o fundador do grupo da «filosofia portuguesa», onde participaram também António Quadros, Afonso Botelho e António Braz Teixeira. A sua iniciação filosófica começara na segunda década do século XX, tanto na sede da «Renascença Portuguesa», como em tertúlias célebres pelos cafés portuenses, em contextos fiéis a uma tradição pitagórico-platónica, em que a iniciação filosófica se não reduz exclusivamente à relação escolar. Por isso, a actividade académica do mestre Leonardo Coimbra será por si interpretada como fiel a uma doutrina que diz esotérica e que identifica com a ideologia da «Renascença Portuguesa», tal como esta se viria a constituir depois da saída de António Sérgio e de Raúl Proença.

Em artigo publicado em 1922 no semanário Nova Gente, intitulado «Sofrer do Poeta», Álvaro Ribeiro fez desde logo profissão de fé nos grandes propósitos que orientariam a sua vida de pensador. Em invocação a Deus, proclama: «Eu só me sinto completamente feliz quando num templo meu coração vos entoa um hino, ou quando sofregamente me mergulho na leitura das obras primas dos nossos escritores.

Deus! Pátria! Literatura!

Trilogia sacrossanta a que jurei dedicar a minha vida quando vós asas me desteis para voar até onde poucos humanos chegam».

Juramento feito e juramento cumprido, pois esta trilogia acompanhou-o de facto ao longo da vida.

Álvaro Ribeiro procurou, numa perspectiva essencialista, determinar a alma da cultura portuguesa, na linha da tradição dos românticos, entre nós fortemente influenciada por Teixeira de Pascoaes. Considerava por isso a essência da nossa cultura como estranha à cultura moderna e a filosofia que intentou erguer sustenta--se na defesa do «génio popular», distante dos ideais do racionalismo, que considerava a filosofia mais «brutalmente hostil à nossa alma».

Do projecto que se propôs realizar dá-nos conta em O Problema da Filosofia Portuguesa (1943): «Tudo depende não de aclimatar, não de continuar, mas de recomeçar uma tradição; tudo depende da eleição de um ponto de partida e da acção de um escol que venha a revelar em actual expressão ontológica o pensamento implícito nos documentos teológicos, políticos e literários que assinalam os decisivos passos da vida do nosso povo, e que venha a formular em sistema ou sistemas a filosofia própria da fisionomia nacional». Encontrar pois o princípio interno inerente à nossa fisionomia cultural, conferir-lhe expressão filosófica, concluindo que o futuro nos pertence e que é Portugal o portador dos valores supremos do espírito, num quadro impregnado de messianismo redentor, tal foi o seu projecto, que deveremos entender também como reacção ao ambiente de descrença e de negação dos valores nacionais, imperante em muitos sectores da nossa cultura na primeira metade do século XX.

Condenando a idade moderna e todos os seus assomos racionalistas que considerava filhos do simplismo; colocando entre parêntesis a tradição escolástica da filosofia portuguesa em nome de uma renovada leitura de Aristóteles; desinteressado perante os canais de contacto com a ciência moderna (o que não sucedera com o seu mestre Leonardo Coimbra), tratava-se de reactivar o que considerava ser a tradição portuguesa que permanecia oculta em textos poéticos e literários, à luz da tese de que a cada poeta corresponde um filósofo.

Havia nessa eleição dos textos poéticos e literários a ideia de que a filosofia é a arte da palavra, aproximando-a da filologia. Para AR a linguagem tinha uma origem sobrenatural, era um espelho sobre o qual o pensar se reflecte. Importaria pois captar o génio da língua, e é o logos ou verbum que detém o poder pelo qual os instintos e sentimentos se podem transformar em pensamentos, razão por que é pela filologia que poderemos aceder à filosofia.

Chegamos assim à tese final de O Problema da Filosofia Portuguesa: a afirmação da necessidade de elaborar a lógica que corresponda ao nosso modo de falar e de imaginar. A linguagem era assim muito mais que um instrumento permutável e o método exegético que preconizou não se distanciava do dos antigos sacerdotes a quem estava reservado o segredo das palavras. Neste contexto, o intérprete é aquele que está atento à acepção cifrada, emblemática e alegórica das palavras, deslocando para planos mais remotos o que o discurso nos oferece.

Assim, o trabalho do filósofo é primeiro o do filólogo, tornando explícito o que está implícito e que circula como mera intuição na línguagem, sobretudo na sua expressão poética e literária, traduzindo-o posteriormente em raciocínio. A isso chama a arte de filosofar, a arte de revelar um segredo que as palavras mostram escondendo, atribuindo-lhes desse modo uma dimensão criacionista e quase mágica.

É dentro destes pressupostos que nos propõe uma filosofia portuguesa, identificada essencialmete com uma determinada perspectiva da teologia, da cosmologia e da antropologia. A sofia é o conhecimento especulativo do absoluto, afirmando-se a filosofia como esforço para esse conhecimento, uma aspiração incessante que culmina inexoravelmente na ideia de Deus. Assim, não existe filosofia sem teologia, entendendo esta última como ciência filosófica culminante. Paralelamente desenvolve a tese de que a filosofia portuguesa se distingue por uma específica vocação teológica, de uma teologia revelada, no pressuposto de que a revelação não é um processo encerrado, como também o não é a criação, que encara como realidade permanente.

Daí o seu interesse pela poesia na sua relação com a filosofia e a religião, surgindo-lhe o poeta como uma espécie de profeta sagrado; daí também a sua insistência na articulação entre cultura e culto, que acentua o conhecido esoterismo da «filosofia portuguesa», apenas possível naquele pequeno círculo de estudiosos dispostos à iniciação, homens superiores em quem Deus se revela ou reflecte.

A obra de Álvaro Ribeiro situa-se pois num ambiente marginal ao racionalismo e ao chamado «academismo», marcado por um vincado esoterismo e pela busca de uma tradição a seu ver oculta, na qual radicaria não só o que verdadeiramente éramos, mas sobretudo o que poderíamos e deveríamos ser, no quadro marcante do messianismo, ou crença na redenção futura da humanidade.

Cumpre esclarecer que o seu nacionalismo não era um reflexo do nacionalismo do Estado Novo, mas sobretudo a tentativa de encontrar uma via original e insuspeitada para restabelecer o valor de Portugal, manchado pela força da ideologia da decadência.

Obras
O Problema da Filosofia Portuguesa, 1943; Leonardo Coimbra, 1954; Sampaio Bruno, 1947; Os Positivistas, 1951; Apologia e Filosofia, 1953; Arte de Filosofar, 1955; A Razão Animada, 1957; A Escola Formal, 1958; Estudos Gerais, 1961; Liceu Aristotélico, 1962; Escritores Doutrinados, 1965; A Literatura de José Régio, 1969; Uma coisa que pensa, 1975; Memórias de um Letrado, 1977, 79 e 80; As Portas do Conhecimento, 1987.

Bibliografia
Pinharanda Gomes, Filologia e Filosofia, 1966; id., Fenomenologia da Cultura Portuguesa, 1970; Orlando Vitorino, «Álvaro Ribeiro», em Nova Renascença, 9 (1982-83); id., «A filosofia de Álvaro Ribeiro como doutrina do espírito», em Leonardo, ano II, 1989; António Quadros, «Álvaro Ribeiro, mestre da geração do '57'», em Leonardo, nº2, 1988; Francisco Morais Sarmento, «A escola de Álvaro Ribeiro», em Democracia e Liberdade, º 42 e 43, 1987.

Pedro Calafate


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