Época Medieval

Renascimento em Portugal

Sob o Signo das Luzes

A Filosofia Portuguesa do Séc. XIX
até à Proclamação da República
A Filosofia Portuguesa depois de 1910

Teodoro de Almeida

Ao lado de Luís António Vernei, o oratoriano Teodoro de Almeida é das mais expressivas figuras do iluminismo português, sendo porventura o que mais repercussão alcançou além fronteiras, não só com a Recreação Filosófica (10 volumes), mas sobretudo com O Feliz Independente do Mundo e da Fortuna.

A sua vasta obra tem o interesse de percorrer toda a segunda metade do século XVIII, verificando-se nesse longo percurso o permanente anseio de conciliar a filosofia com o cristianismo.

Dessa motivação já dera nota na sua Oração em louvor da filosofia experimental (1757), onde sublinha as excelências da natureza física à luz da moderna filosofia experimental, destacando três aspectos de base: a beleza e o deleite que do ponto de vista estético são proporcionados ao observador dos espectáculos da natureza; a utilidade das ciências no âmbito da reforma da vida do homem em sociedade, como era característico do ideal iluminista; e finalmente, como culminar deste processo, uma mais profunda compreensão da obra de Deus, no quadro de uma aliança entre a teologia natural e a filosofia experimental.

Já na sua principal obra, a Recreacção Filosófica, o veremos sublinhar com insistência esta mesma aliança, proclamando, como S. Paulo que o Universo é um «espelho» onde reverberam os divinos atributos, assumindo o termo "especulação" o sentido muito preciso de processo que abarca e projecta o mundo visível enquanto este participa do invisível, sendo portanto uma leitura da verdade por meio de um espelho, na base da mediação de semelhanças.

É pois no respeito por esta tradição especulativa que devemos compreender a atitude agora apresentada pelos modernos, num novo contexto assinalado pelo apogeu da física matemática, continuando a perceber o sentido divino das realidades visíveis, num processo que muito aproxima estes autores do pujante movimento dos virtuosos em Inglaterra, onde militaram os grandes vultos do naturalismo europeu dos séculos XVII e XVIII.

A partir deste pressuposto, o Oratoriano elabora uma longa exposição, em dez volumes e em forma de diálogo, como convinha ao pedagogismo da época, acerca da natureza, da estrutura e conteúdo destas provas naturais da existência de Deus e do respectivo suporte racional, partindo daí, nos dois últimos volumes, para uma incursão nos domínios da moral e do direito natural, contra o materialismo e o deísmo, como possibilidades diversas de um naturalismo que rejeitou.

Para Teodoro de Almeida, «a natureza não fala nem tem ciência» no sentido preciso de recusa do imanentismo ou do panteísmo. Encarada na sua pura materialidade, «a natureza é muda», mas vista à luz da sua dependência perante um absoluto que a criou, transforma-se num livro aberto e pleno de significado espiritual, estabelecendo uma relação "secundum originem", que abarca no seu significado mais amplo a ordem particular das criaturas, nas suas relações de lugar, tempo e dignidade.

No seu espírito, a criação e a conservação do universo por Deus, ao mesmo tempo que imprimem à natureza a marca de uma dependência, põem em destaque a sua própria dignificação, na medida em que revelam as modalidades da presença de Deus nas criaturas, como modos finitos de uma perfeição infinita, na qual a essência da perfeição pertence a Deus, possuindo-as as criaturas por participação. Criação e conservação, ou «criação continuada», asseguram a permanência na existência dos entes naturais, sendo Deus o criador do ser das criaturas e o conservador activo das suas existências e, portanto, também causa eficiente suprema de todo o devir.

Em todo o caso, a acção divina na natureza criada exerce-se através das causas segundas que consubstanciam, não obstante, uma verdadeira legalidade e uma verdadeira actividade que a razão e a ciência se esforçam por determinar, à luz das suas metodologias específicas, podendo embora Deus agir milagrosamente, interrompendo o curso ordinário das causas segundas, como sucedeu com o terramoto de Lisboa, ao qual dedicou o poema Lisboa Destruída, em oposição às teses de Voltaire e de Alexander Pope.

Repare-se pois no tão significativo passo da Recreacção Filosófica em que formula sinteticamente a sua posição teórica:

«Cheval.: -- Dizei-me Theodósio que hei-de eu entender por esta palavra natureza? Toda a minha vida ouvi esta bela palavra que vem a cada passo nos livros modernos, e ninguém me disse jamais o que era a natureza.

Theod.: -- Natureza, meu Chevaier, não é outra coisa que a Mão de Deus (....). Eu chamo natureza a esta série continuada e costumada de movimentos em tudo o que é visível (...) Esta série tão constante de movimentos no céu e na terra e tão belamente ordenada, sendo, ao mesmo tempo, tão vária e complicada, pede uma grande inteligência e um grande poder. Ora, a essa inteligência chamo eu Deus» .

Quer isto dizer que em ser a Mão de Deus, se entende que é Ele que «obra imediatamente esses efeitos, segundo a lei ou costume que ele pôs».

Todavia, ao dizer que Deus obra «imediatamente», está no fundo a apelar a um antigo preceito da escolástica, pois que a acção de Deus e a acção das criaturas, sendo acções distintas, não representam fases independentes: a totalidade do efeito depende da causa primeira e da causa segunda, mas sem que possa dizer-se que há uma parte do efeito que é devida à acção de uma e uma parte que se deve atribuir à acção de outra.

Definida nestes termos a relação entre natureza e Deus, faltava equacionar a presença do homem, a respeito do qual proferiu uma frase quase profética e cujo pleno significado caberia ao nosso tempo desvendar: «Tudo, meu Cevalier, está tão bem feito pela mão do Supremo Artífice que qualquer coisa que os homens emendassem se pudessem, lhes traria incómodos infinitos e talvez a ruína total».

Outro aspecto interessante radica no seu ataque ao deísmo, sobretudo ao argumento de Voltaire de que a noção de providência, ou o cuidado que Deus dispensa às criaturas, era indigna da sua grandiosidade. Entende a respeito o Oratoriano que a questão está mal formulada, pois Deus é infinito e o cuidado que o infinito tem do finito não é equacionável à luz das categorias da nossa razão finita: «Costuma o vulgo atribuir a Deus todos os defeitos que achamos na natureza dos homens, cuidamos que ele também se há-de cansar em obrar em muitos lugares ao mesmo tempo». Deus não é determinado pelos limites de uma qualquer essência, a sua infinidade e imensidade situam-no para lá de toda a medida, sendo pois ubíquo e omnipresente.

Também a crítica ao materialismo surge evidente na sua obra, contra os excessos do cientismo que terminavam numa excessiva naturalização do homem, como no L'Homme Plante de La Mettrie. Para Teodoro de Almeida, como aliás para Buffon, existe uma distância infinita entre o mais inteligente dos animais e o mais estúpido dos homens, sendo manifestação de superficialidade intelectual querer aproximar as essências de uns e outros, para lá de simples analogias orgânicas.

Não menos relevante são as suas considerações no domínio da estética, evoluindo dos padrões universalistas e geometrizantes dos neoclássicos para o gosto romântico de uma natureza que segue livremente o seu curso com horror à linha direita. Do ponto de vista filosófico esta questão prolonga-se na distinção entre os sentimentos do belo e do sublime tal como fora postulada por Burke e Kant, vindo a expressar-se no debate sobre o gosto dos jardins, nomeadamente do gosto dos jardins ingleses de que Teodoro de Almeida foi partidário, aspecto que o coloca como precursor do gosto romântico.

Como prolongamento desta última problemática encontra-se o seu Feliz Independente do Mundo e da Fortuna, que conheceu três traduções para castelhano e dezenas de edições até finais do século XIX. Trata-se de um debate romanceado sobre a felicidade, no âmbito da fadiga existencial do homem perante a civilização urbana, na busca de uma simplicidade perdida, identificada com a vida campestre.

O abandono da vida urbana significa o reencontro da alegria e da felicidade, que no entanto se não completa sem que a pedra regresse ao centro do círculo, metáfora que utiliza para designar Deus, centro de um círculo de onde tudo emana e para onde tudo se dirige.

Obras
Recreacção Filosófica, 10 volumes, Lisboa, 1751-1800; Cartas Físico-matemáticas, Lisboa, 1874; O Feliz Independente do Mundo e da Fortuna, três tomos, Lisboa, 1779; Oração em Louvor da Filosofia Experimental, ms, da BNL, 8608, fol. 82 a 88; Lisboa Destruída, Lisboa, 1803; Meditações dos Atributos Divinos, 4 volumes, Lisboa, 1796; A morte alegre do filósofo cristão, in Opúsculos sobre diversos assuntos, Lisboa, 1797; Cartas espirituais, Lisboa, 1804.

Bibliografia
F. Azevedo, Teodoro de Almeida and the portuguese enlightenment, Washingthon, 1974; Pedro Calafate, A Ideia de natureza no século XVIII em Portugal, Lisboa, 1992; João Pereira Gomes, «Teodoro de Almeida» in Logos-Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, Lisboa-São Paulo, 1989-1992; A. Banha de Andrade, «Teodoro de Almeida» in Dicionário de História da Igreja em Portugal, vol. I (contém ampla bibliografia).

Pedro Calafate


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