Época Medieval

Renascimento em Portugal

Sob o Signo das Luzes

A Filosofia Portuguesa do Séc. XIX
até à Proclamação da República
A Filosofia Portuguesa depois de 1910

Manuel de Azevedo Fortes

Integrado-se na corrente das Luzes, Azevedo Fortes foi engenheiro do exército tendo a sua formação na área das ciências exactas muito contribuído para a coloração da sua obra. É autor do primeiro tratado sobre lógica integralmente escrito em português, quebrando o anterior monopólio do latim, a Lógica Racional Geométrica e Analítica, publicada em Lisboa em 1744.
Nesta obra procurou realizar um compromisso entre o sensismo de John Locke e o inatismo de Descartes, nomeadamente no plano da teoria das ideias, tema que o arrastou para um plano relativamente sincrético. Reveste-se todavia de grande interesse para o estudo de um dos temas maiores do nosso iluminismo, atendendo à sua vertente pedagogista: o conceito de método. Aliás, sobre este mesmo tema elaborou outro texto que se conserva ainda manuscrito (Ms. 3127 da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, fols. 148-154). Outra vertente essencial destes seus textos é a primazia atribuída ao paradigma geométrico, vigente entre os teóricos das Luzes.

De um modo global, apresenta as grandes linhas da lógica cultivada entre os iluministas, nomeadamente a redução do espaço da lógica artificial em favor da lógica natural, bem como uma orientação psicologista que em muito contribuirá para o desprestígio da lógica formal.

A. F. admitiu, como Descartes, o dualismo da substância - a espiritual e a corpórea -, aceitou a teoria corpuscular contra a «errada concepção das formas substanciais», admitiu a res cogitans como evidência e desenvolveu, também na esteira de Descartes, uma concepção vincadamente mecanicista da física do corpo humano.

Já no referido plano da teoria das ideias e no esforço de confluência entre o inatismo e o sensismo, entendeu que os sentidos, desde que bem aplicados, devem considerar-se «regra certa das coisas corpóreas e sensíveis, que são a maior parte das que nós conhecemos; porém não são regra de certeza para os nossos conhecimentos intelectuais, dos quais só nos pode fazer certos a razão, clareza e evidência das nossas ideias». Sublinhando ainda a importância dos sentidos no processo do conhecimento, Fortes entende que se não houvesse nenhum grau de certeza no plano da sensação, seria o mesmo que admitir que Deus não criou a substância corpórea mas somente quis que dela tivessemos uma aparência vã, o que a seu parecer era indigno da sua omnipotência, dado que «a poderosa eficácia de uma causa se mede pela grandeza dos seus efeitos».

Quanto à questão do inatismo, e para bem se perceber a sua posição, importa esclarecer que o conceito de inato foi entendido por Descartes, nomeadamente na terceira das Meditações Metafísicas para designar duas coisas diversas: o facto de consciência em si mesmo, ou seja, as ideias que o sujeito experimenta em si mesmo, independentemente da sua vontade, e, por outro lado, as noções que não sendo pura produção ou ficção do espírito não provêm dos sentidos. Ora, parece ser o primeiro tipo de inatismo que Fortes reconhece nas suas críticas ao empirismo e a Locke: «As ideias dos sentimentos interiores da nossa alma, que é inteligível e um acto que se sente, são inseparáveis de nós mesmos e são uma boa parte da nossa essência: segue-se que estas são ideias inatas contra a opinião de Newton e Locke e de outros ingleses modernos».

Por isso, e depois de estabelecer os direitos da sensação, recusa-se a encarar a alma sujeita a um grau de passividade tal que apenas estivesse limitada às operações de «composição», «aumentação», diminuição e comparação» de ideias, o que implicaria a concepção do homem como «um ser inteiramente corpóreo, pois a alma não poderia ter nenhuma operação independentemente do corpo». Para Azevedo Fortes são inatas as ideias que a alma tem da sua natureza e da sua existência, sendo também inatas certas verdades eternas como é o caso das ideias que fazemos da perfeição e da regularidade das formas geométricas, as quais se devem considerar como acto puro do espírito, «que a alma teria, ainda que não estivesse unida ao corpo».

Todavia, quanto ao segundo tipo de inatismo, Fortes entende que não se podem considerar inatos «os primeiros princípios ou primeiras verdades», preferindo encará-los como «verdades adquiridas por reflexão».

Já no que se refere à doutrina sobre o método, desenvolve-a tanto na Lógica Racional, como no Discurso sobre o Método, devendo sublinhar-se que o tratamento deste tema nos compêndios de lógica fora iniciado com os dialécticos do renascimento, nomeadamente com Melanchton e Pedro Ramo, dado que Aristóteles, (se bem que na sua obra o método possuisse um evidente sentido técnico), não atribuía à lógica a missão de o estudar de modo sistemático.

Fixando-nos neste último texto, que aguarda ainda edição, o método é entendido como a ordem da razão, enquanto esta se entenda como capacidade actuante e como princípio de operações, com especial incidência tanto na delimitação e inventariação dos argumentos, como na sua posterior disposição, o que supõe o entendimento da razão numa base essencialmente argumentativa, prolongando-se num contexto pedagogista, edificado para explicar ou demonstrar conteúdos cujo conhecimento se pretende transmitir.

Partindo do princípio da universalidade da razão, entende o autor que a diversidade de pareceres ou operações não procede «de sermos mais ou menos razoáveis, mas somente de conduzirmos por diferentes caminhos os nossos pensamentos, pois para achar a verdade não basta ter bom entendimento, o ponto está em bem o aplicar».

O método na lógica é pois uma ordem de condução da razão nas suas operações, entendendo por estas a ordem de «descoberta» da verdade (sinónimo neste caso de inventariação dos argumentos) e a ordem de transmissão dessa verdade uma vez delimitada. À primeira corresponde o método analítico, e à segunda o método sintético, identificado este último com a ordem da demonstração geométrica, por ser a mais simples, mais segura e mais breve, correspondendo além do mais à ordem natural da razão na assimilação dos conteúdos de ensino.

Obras
Lógica Racional, Geométrica e Analítica, Lisboa, 1744; Discurso Filosófico sobre o Método com que se hão-de aprender as sciencias, Ms. da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, folhas, 148-154.

Bibliografia
Amândio Augusto Coxito, «O compêndio de lógica de Manuel Azevedo Fortes e as suas fontes doutrinais», em Revista de História das Ideias, Coimbra, nº3, 1981, pp. 9-28; António Alberto Banha de Andrade, «Manuel de Azevedo Fortes, primeiro sequaz, por escrito, das teses fundamentais cartesianas em Portugal», em Contributos para a história da mentalidade pedagógica portuguesa, Lisboa, 1982, pp. 191-226; Pedro Calafate, «Descartes na filosofia portuguesa do século XVIII», em Metamorfoses da Palavra - estudos sobre o pensamento português e brasileiro, Lisboa, 1988, pp. 206-216.

Pedro Calafate


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