Época Medieval

Renascimento em Portugal

Sob o Signo das Luzes

A Filosofia Portuguesa do Séc. XIX
até à Proclamação da República
A Filosofia Portuguesa depois de 1910

Pedro Hispano Portucalense (ou Pedro Julião)

Filósofo e médico, nascido em Lisboa, provavelmente em 1205, fez os primeiros estudos na escola catedral olisiponense, e depois em Paris, vindo a ser nomeado Papa com o nome de João XXI.

No estado actual das investigações persistem sérias dúvidas sobre as obras que efectivamente escreveu, sendo difícil sustentar que, dada a amplidão temática e sobretudo atendendo à diversidade dos estilos de escrita, seja efectivamente autor de todas as obras que comummente lhe vêm sendo atribuídas.

Em todo o caso, as opiniões confluem, embora com segurança relativa, para lhe atribuir a autoria do Tractatus, depois chamado Summulae logicales, manual pelo qual se procedeu ao ensino da lógica nas mais prestigiadas universidades europeias, até ao século XVI, dando-lhe projecção e importância bastante para figurar na Divina Comédia de Dante. Embora não conhecesse as mil transcrições da obra de Paulo Orósio, são mais de três centenas os manuscritos conhecidos da sua obra e quase outras tantas as edições impressas nos séculos XVI e XVII.

A parte teoricamente mais importante desta obra é constituída pelos tratados que dão corpo à «logica modernorum» e, dentro desta, a problemática «de proprietatibus terminorum», vulgarmente conhecida como «lógica terminista», onde se inclui a distinção entre a significatio e a suppositio, que não sendo originaria de PH, é por ele magistralmente exposta.

Esta distinção, a par de outras que estuda no seu tratado, como as que se referem à «copulatio» e «appelatio», visa o estudo e correcta compreensão das diversas funções que as palavras podem adquirir quando utilizadas como "termos" no seio das proposições, o que desde logo supõe uma forte aproximação da lógica à gramática, transformando-se esta última disciplina na sua base concreta de actuação, e tendo como horizonte a possibilidade de fazer convergir as leis do pensamento com as leis da linguagem.

A distinção referida apresenta relação com a dialéctica de Pedro Abelardo, sobretudo quando este distingue a significatio de rebus da significatio de intellectibus, aproximando-se cada um destes conceitos, no Tractatus do autor português, dos de significatio e supositio respectivamente, possuindo o segundo um eminente valor lógico. Pela significatio de rebus entendia Abelardo a "demonstração" das coisas em conformidade com a natureza destas; já a significatio de intellectibus visava orientar a lógica num sentido mais formal, ou seja, para o domínio dos "nomes" e seus significados, libertos do contacto directo com as coisas. Esta temática estava por sua vez integrada na mais vasta polémica sobre os universais, pois que Abelardo, quebrando com a tradição realista, não entendeu os universais como coisas mas como elementos integrantes do conhecimento e da linguagem.

É esta tarefa que Pedro Hispano expõe ao entender a significatio como a representação de uma coisa (res) por meio de uma palavra (vox) e a suppositio como um outro plano, configurando-se assim um duplo nível linguístico, pois que o segundo apenas se preocupa com o estudo da relação ou relações das palavras entre si no seio das proposições categóricas, definindo uma estrutura independente e autónoma. Nesta conformidade, a lógica terminista não visa o estudo das propriedades do objecto, individual ou universal, significado, mas sim os conteúdos de pensamento inerentes às palavras.

Delineia-se deste modo uma distinção entre pensamento e realidade, e ao entender-se a lógica essencialmente como dialéctica proclama-se que esta se situa no plano estrito das palavras e não no das coisas, situação para que muito contribuirá à técnica medieval da disputatio. Neste enquadramento, o objecto da dialéctica tende a coincidir com o estudo da validade dos enunciados linguísticos independentemente do conteúdo objectivo (significatio) das palavras, o que é dizer que se constitui uma linguagem sobre a linguagem-objecto, uma linguagem artificial que visa a análise das funções sintáticas e semânticas das expressões linguísticas com a finalidade operativa de fornecer ao conjunto das ciências meios legítimos de expressão, que não coincidem nem com a linguagem ordinária, nem com as exigências de expressão literária, dado que o que está em causa é saber o modo como os diversos elementos verbais determinam, nas suas relações, a forma lógica das proposições.

Será exactamente sobre esta metalinguagem, transformada em objecto essencial da dialéctica, que incidiram as criticas violentas dos humanistas do século XVI, nomeadamente de Juan Luis Vives, que encarava esta lógica escolástica como mero exercício técnico, tal como aliás o método das disputas, para privilegiar a «linguagem natural», fruto e uso de uma comunidade concreta.

Para além do Tractatus são-lhe ainda atribuídos, embora com dúvidas, as obras Scientia libri de anima¸ Commentarium in De anima e uma obra médica intitulada Thesaurus pauperum, para além da Expositio librorum Beati Dionysii.

Os seus tratados e comentários sobre o problema da alma constituem um rico manancial do saber medieval sobre a constituição anímica do homem, para além de nos indicarem a sua perspectiva sobre o âmbito da pesquisa filosófica, que em seu entender, abrange o conjunto das coisas criadas, indagando «as essências, as propriedades, as forças, as obras, a ordem, o peso, a medida, os efeitos e as causas de todas as coisas. E fá-lo, ora dirigindo o mais penetrante aspecto do seu olhar para as realidades supremas, ora descendo até às mínimas, ora circulando por entre as realidades intermédias de uma forma média, ora elaborando discursos comparativos acerca de cada uma, girando em torno das mais elevadas e das médias, e esforçando-se por investigar em cada uma delas o poder, a sabedoria e a bondade do Criador, bem como os segredos da natureza» (Scientia libri de anima, ed. de Manuel Alonso, Madrid, 1941. P. 45).

A sua obra é bem a manifestação prática desta concepção teórica. Assim, do ponto de vista da ontologia e da metafísica, manifestou-se partidário do hilemorfismo universal e fiel à tradição escolástica sobre a composição dos corpos. De facto, para os escolásticos, como para PH, os corpos são compostos por dois princípios, uma matéria e uma forma, e ao conjunto desses dois princípios dá-se o nome de substância, sendo a matéria uma espécie de substracto sobre o qual actua a forma, sendo também a forma que desempenha a função essencial de especificação do ser, à luz do princípio de individuação, no sentido preciso em que é à forma que se deve atribuir a unidade entitiva do ser.

Quanto à noção de alma, PH apresenta-nos uma concepção mais rica e mais minuciosa da que era tradicionalmente pensada pelos escolásticos, para quem a alma mais não seria, na tradição tomista, do que a forma do corpo. No Commentarium in De anima desenvolve o seu conceito de alma em quatro pontos hierarquicamente distintos, mas confluentes: 1- a alma como substância espiritual, definida pela sua relação com Deus, que a cria e conserva; 2- a alma na sua relação com o corpo, por ela dirigido e conservado; 3- a alma na sua relação com a sua própria essência; 4- a alma definida em comparação com as demais coisas, vista pelo prisma da privação (deffinitur per privationem).

Estas quatro dimensões da sua explanação dão-lhe uma dimensão bem mais ampla e complexa que a definição tomista, embora o seu principal objectivo fosse igualmente o de assegurar a espiritualidade, a substancialidade e separabilidade da alma, de acordo com a teologia cristã.

Não menos importantes são as considerações tecidas a respeito da auto-gnose da alma ou capacidade da alma para a si própria se conhecer, em virtude do poder intelectivo da alma intelectiva, desenvolvidas no cap. IX do Scientia libri De anima.

Seguindo-se a análise da ontologia do conhecimento, onde procura conciliar as vias platónica e aristotélica, concluindo que o homem tem ao seu dispôr duas vias ou modos de conhecer, sendo o primeiro um modo inato e superior, onde se inscreve o conhecimento que o homem tem de Deus, do Bem e da sua própria alma, e um conhecimento adquirido e portanto não inato, obtido «per phantasmata» ou seja, através das imagens das coisas do mundo, e perspectivando-se como inferior ao primeiro. Em articulação com a questão do conhecimento, cabe ainda a referência à sempre candente questão dos universais, mostrando-se partidário de uma posição realista, considerando que a alma tem a capacidade para reproduzir em si os modelos ou exemplares das coisas, sendo esses modelos ou exemplares os universais, por corresponderem à forma ideal dos seres.

Bibliografia Sumária

Activa
A melhor edição do Tractatus é a de De Rijk, Tractatus called afterwords Sumulae Logicales Ansen, 1972; M.H. da Rocha Pereira, Obras Médicas de Pedro Hispano, Coimbra, 1973; para os restantes textos cf. Petrus Hispanus, Obras Filosóficas. Edição, introdução e notas de Manuel Alonso, Madrid, 1944.

Passiva
Os melhores textos sobre a obra lógica de P.H.P. são os de Amândio Augusto Coxito, Lógica, Semântica e Conhecimento na escolástica peninsular pré-renascentista, Coimbra, 1981 e de Gabriel González, Dialéctica escolástica y lógica humanista. De la edad média al renacimiento, Salamanca, 1987. Sobre as questões textuais veja-se J. M. da Cruz Pontes, A obra filosófica de Pedro Hispano -- Novos problemas textuais, Coimbra, 1972. Vejam-se também os vários estudos de João Ferreira: «As Súmulas logicais de Pedro Hispano e os seus comentadores», Colectânea de Estudos, 3, III, Braga, Setembro de 1952, pp. 360-397; «Temas de cultura filosófica portuguesa. Sobre a posição doutrinal de Pedro Hispano», Colectânea de Estudos, V, 1, Braga, Jan. 1954, pp. 48-56, Petrus Hispanus eiusque positio psychologia relate ad Avicennam, Roma, 1953.

Pedro Calafate


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