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Duarte Pacheco Pereira
A questão do conhecimento, no quadro de uma nova relação entre o homem e a natureza é porventura a vertente mais dinâmica do pensamento renascentista português, devendo a este respeito considerar-se duas gerações de intelectuais que correspondem a momentos distintos de abordagem do tema. Na primeira destaca-se sobretudo Duarte Pacheco Pereira, nascido pouco depois de meados do século XV, na segunda teremos de considerar as obras de Pedro Nunes, D. João de Castro e também a de Garcia de Orta. Por seu turno, numa perspectiva mais distanciada, mas não menos fundamental, importa referir a figura de Francisco Sanches, que escrevendo embora fora das nossas fronteiras, elaborou uma vasta obra no domínio da teorização do conhecimento científico.
A passagem da geração de Duarte Pacheco Pereira para a de Nunes e Castro dá-se um dos passos que mais importante se tem revelado na história da física: a passagem do universo do imediato da percepção e do quotidiano do homem para o fundo do pensamento. De facto, com Duarte Pacheco Pereira desponta o primeiro plano a que nos referimos, consubstanciado num discurso sobre a natureza que se apoia no ver e no ouvir, numa vertente eminentemente geográfica, corrigindo e superando considerações dos antigos geógrafos.
Não se trata de um corte ou de uma ruptura com o saber historicamente herdado, que é ainda a base de que se parte, mas sobretudo da consciência de que os antigos não disseram tudo e não souberam tudo. Foi esta consciência que permitiu instaurar a «dinâmica do não saber» - tão relevante na futura polémica dos «antigos e modernos» - vindo a culminar, na segunda metade do século XVI, no Quod nihil scitur de Francisco Sanches.
«Dinâmica do não saber» e «pragmatismo vivido» são talvez as expressões que melhor caracterizam esta fase do pensamento português, tão bem representada por Duarte Pacheco Pereira. Não encontramos na sua obra a expressão do pensamento sob a forma de sistema, mas há uma orientação e uma atitude de espírito, capaz de duvidar e de estabelecer a verdade em função de critérios de observação individual e directa, e de suspender o juízo quando essa observação não é realizável, o que, num cômputo global, afirmará os fecundos caminhos da crítica e sobretudo da liberdade de pensamento.
Para lá das novas aportações ao saber geográfico e antropológico trazidas por Duarte Pacheco Pereira no seu Esmeraldo de situ orbis, o que há de fundamental a sublinhar é a instauração de hábitos de positividade e de precisão ao nível do conhecimento geográfico. Importa não esquecer que a frase que celebrizou este nosso autor, «a experiência é madre das coisas» era antiga de séculos, mas o que importa é apreender as diferentes consequências de que se foi revestindo ao longo da história.
Todavia, o significado da palavra experiência, tanto em Duarte Pacheco Pereira, como mais tarde em Pedro Nunes ou D. João de Castro, apesar das diferenças que os separam, não a aproximam ainda da moderna noção de método experimental. No Esmeraldo de situ orbis, a experiência é sinónimo de "prática", tendo inclusive um sentido instável, pois mais que uma vez é invocada para descrever "factos" irreais, como quando afirmava ter comprovado a existência na costa africana de cobras com várias cabeças que se desfaziam na água ao entrarem no mar, "facto" «duro de crer a quem não tem a prática destas coisas como nós temos», numa interessante justaposição entre o plano da geografia maravilhosa medieval e o da observação, fazendo-o ver o que na "realidade" não é "real".
No entanto há aqui um caminho que se percorre e esta geografia empírica, nascida da consciência empírica da natureza, acentuou a dimensão de positividade que se prolongou numa ordenação das coisas no espaço e no tempo, conquistando os liâmes da investigação objectiva. Este processo, no Esmeraldo, é mais evidente quando se trata de descrever a terra «pelo meudo», nos seus aspectos mais pormenorizados e verificáveis à vista, dando-se pelo contrário uma maior dependência da geografia antiga quando se trata de descrever o universo nos seus aspectos mais gerais, ou como diz no seu texto, «por soma».
Outra fase relevante deste processo é o que se refere à alteração progressiva da utensilagem aritmética que se vinha delineando também nos almanaques dos comerciantes de Lisboa, expressa na substituição da numeração romana pela numeração árabe. O que agora está em causa é a lenta alteração das estruturas mentais, pois é sabido, como escreveu Lucien Febvre, que o homem que vive num mundo onde a matemática é elementar ou inexistente, não tem a razão formada do mesmo modo que aquele que, mesmo ignorando a matemática, vive numa sociedade afeita, no seu conjunto, aos hábitos de precisão dos modos de cálculo e à rectidão das formas de demonstrar. Este tema, na obra de Duarte Pacheco Pereira, mereceu uma abordagem bastante pormenorizada na obra de Joaquim Barradas de Carvalho, ao propor a tese de uma «pré-história da matematização do real» e de uma «história subterrânea dos conceitos». Não se trata ainda da leitura quantitativa e geométrica do universo, mas de uma lenta transformação de hábitos mentais e de utensilagem aritmética, que se afirma progressivamente como condição para a emergência de uma nova leitura do mundo.
Bibliografia sumária
Obras
Esmeraldo de Situ Orbis, edição da Academia Portuguesa da História, com introdução e notas de Damião Peres, Lisboa, 1988.
Bibliografia
Joaquim Bensaúde, L'Astronomie nautique au Portugal à l'époque des Grandes Découvertes, Lisboa, 1912; João de Castro Osório, A revolução da experiência, Lisboa, 1928; Joaquim Barradas de Carvalho, O Renascimento Português. Em busca da sua especificidade, Lisboa, 1980; id., Portugal e as Origens do Pensamento Moderno, Lisboa, 1981; Id., La Renaissance Portugaise. A la recherche de sa specificité, Paris, 1978. (contém ampla bibliografia).
Pedro Calafate
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