Época Medieval

Renascimento em Portugal

Sob o Signo das Luzes

A Filosofia Portuguesa do Séc. XIX
até à Proclamação da República
A Filosofia Portuguesa depois de 1910

Frei Álvaro Pais

Nascido na Galiza entre 1275 e 1280, está ligado à cultura portuguesa pelo facto de ter sido Bispo de Silves e entre nós ter ultimado uma das suas obras mais relevantes: o Speculum Regum, para além da sua actuação pública como polemista, nomeadamente no seu ataque a Tomás Escoto. Foi membro da Ordem dos Frades Menores tendo-se destacado essencialmente como canonista e filósofo da política e do direito.

O conjunto das suas obras (Speculum Regum, Status et Palnctus Ecclesiae, e Colyrium Fidei Adversus Haeresis) responde à motivação essencial de estabelecer as bases teóricas da unidade da igreja, ameaçada quer pela proliferação de heresias, quer sobretudo pelas pressões imperiais no corpo da cristandade, quer ainda pelo mundanismo e pela corrupção de um clero distante do ideal de pobreza evangélica.

Foi, por um lado, um dos mais célebres defensores da hierocracia medieval, e por outro, um entusiasta dos ideais de pobreza, tema que o aproximará dos Espirituais Franciscanos, ou Irmãos Espirituais que defendiam a observância estrita da regra de S. Francisco, logo seguidos pelos fraticelli. São aliás de extrema violência os textos em que critica os que não receavam pregar «com os corpos fartos e as faces coradas Jesus crucificado, pobre e esfomeado», portando-se como «perseguidores dos pobres e correndo avidamente atrás do lucro», ou acusando de ladrões e leões esfaimados os senhores que expoliavam os pobres para sustentarem as suas cortes de meretrizes.
Todavia, o que permanece essencial, para lá da corrupção dos seus ministros, é que, em si, a igreja é impoluta, pelo que nada poderia justificar a divisão ou separação que colocasse em causa a sua unidade. Em última análise, era Cristo o seu fundamento, sendo nele que repousa a unidade entre os cristãos, pelo que a não podem atingir os graves pecados dos seus membros.

Esta separação entre a dignidade e a pessoa dos dignatários é fundamental, pois é a partir dela que se estabelecem as bases para a crítica, proclamando a respeito de todos os níveis de poder que nenhuma jurisdição é má ou pode de si pecar, pois em si são boas por provirem de Deus, embora o homem possa pecar, e nelas constituído frequentemente peque. Assim, criticar os clérigos não será o mesmo que criticar a igreja, como criticar a conduta dos tiranos não é o mesmo que criticar o poder temporal. A vertente de crítica e de insatisfação que a sua obra expressa não lhe permite por isso pregar a desobediência ou a revolta, perturbadoras da unidade e da paz. No caso da igreja, a renovação faz-se pela penitência, conduzindo a vontade para o interior da consciência e tirando-a das coisas vãs em que está cativa. No caso dos príncipes seculares que degenerem em tiranos, é do apelo ao Papa e sobretudo da oração com prévia contrição dos pecados que os povos poderão esperar auxílio.

Partindo deste ponto A.P. ergue uma doutrina político-religiosa, e a este propósito reflecte sobre um dos núcleos mais relevantes da sua obra: a relação entre o poder régio espiritual e o poder régio temporal.

O fundamental a reter é que a política não é uma instância autónoma, pois que o homem é um ser essencialmente espiritual. Então, tudo o que diz respeito à sua existência histórica deverá ser entendido como via de acesso à vida do espírito. Manifesta-se deste modo um vector antropológico e metafísico expresso no primado do espírito sobre a matéria e da unidade sobre a multiplicidade, definindo-se o homem essencialmente como um ser capaz de Deus.

Para o Franciscano, tal como para S. Tomás, o poder é constitutivo da sociedade humana, pois o interesse individual nem sempre coincide com o bem comum que o poder visa assegurar. Tendo origem mediatamente em Deus, o poder tem origem imediata no Papa, que o delega no imperador ou nos príncipes seculares.

A finalidade do poder secular é a de conduzir os homens, ao nível inferior das realidades estatais, para a verdadeira felicidade, pelo que se verifica uma coincidência de origem e de fim entre os dois poderes, exercendo-se estes, no entanto, por meios diferentes. No entanto, sublinhará sempre que a matéria das leis civis é a justiça, pelo que o seu fundamento é eminentemente ético e a sua finalidade vincadamente espiritual.

Estavam assim lançadas as bases para equacionar a difícil questão da relação entre os dois poderes. De facto, para o Franciscano, o poder espiritual prima claramente sobre o temporal, porque a alma é mais preciosa que o corpo, e as coisas espirituais mais dignas que as temporais, logo, àquele a quem foram confiadas as almas, muito mais se devem confiar os corpos e as coisas materiais, que são dados ao espírito por acréscimo, no sentido em que são realidades acessórias.

Neste quadro, fica ainda mal esclarecida a questão do grau de autonomia concedido ao poder secular, à qual responde, no Status et Plantus Ecclesiae, apoiado em Tiago de Viterbo e Dionísio Areopagita. As realidades diversas nos planos inferiores unificam-se nos superiores, e as realidades inferiores pré-existem nas superiores. Aplicando este esquema hierárquico à relação entre os dois poderes temos que ao nível superior das realidades espirituais não existem dois poderes independentes, mas um só poder com autoridade no espiritual e no temporal. Todavia, perspectivando a questão ao nível inferior das realidades estatais, podemos já falar de dois poderes independentes entre si, que quando objectivados no plano superior dos interesses do espírito se identificam num único poder régio. Por outras palavras, todos os bens materiais que estão sob o poder temporal, estão também sob o espiritual, mas não do mesmo modo, porque estão sob o temporal imediatamente, e sob o espiritual mediante o temporal; estão sob o temporal quanto à administração e ordenação imediatas, e sob o espiritual quanto à ordenação principal.

Uma última palavra cabe aos seus textos sobre espiritualidade ínsitos no final do Status et Planctus Ecclesiae, prolongando-se numa vertente mística e contemplativa, o que lhe permite definir as linhas fundamentais da ascese religiosa em torno de três princípios: pobreza, obediência e castidade.

Obras
Estado e Pranto da Igreja (edição bilingue Latim e Português, com tradução de Miguel Pinto de Menezes, prefácio de Francisco da Gama Caeiro e introdução de João Morais Barbosa) oito volumes, Lisboa,1988-1998; Espelho dos Reis (edição bilingue Latim e Português com tradução de Miguel Pinto de Menezes), Lisboa, vol. I, 1955, vol. II, 1963; Colírio da Fé contra as Heresias (edição bilingue, Latim e Português com tradução de Miguel Pinto de Meneses) , Lisboa, vol. I, 1964, vol. II, 1956; V. Meneghin, Scritti inediti di Fra Alvaro Pais, Lisboa, 1969.

Bibliografia
A.D. Sousa Costa, Estudos sobre Álvaro Pais, Lisboa, 1966; Ilídio de Sousa Ribeiro, «Sob o signo de Álvaro Pais» Colectânea de Estudos, Braga, (1953), IV-2; João Morais Barbosa, A teoria política de Álvaro Pais no Speculum Regum, Lisboa, 1972; id., O «De statu et planctu ecclesiae»: Estudo Crítico, Lisboa, 1982; id., Álvaro Pais, colecção pensamento português, Lisboa, 1992 (contém bibliografia exuastiva); Pedro Calafate, «Álvaro Pais», Dicionário de Literatura Medieval Portuguesa e Galega, org. de G. Tavani e Giulia Lancini, Lisboa, 1994.

Pedro Calafate


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