Época Medieval

Renascimento em Portugal

Sob o Signo das Luzes

A Filosofia Portuguesa do Séc. XIX
até à Proclamação da República
A Filosofia Portuguesa depois de 1910

Frei André do Prado

Évora, pintura de 1501, Arquivo Distrital de Évora

Évora, pintura de 1501, Arquivo Distrital de Évora
André do Prado nasceu em Évora nos finais do século XIV, tendo estudado no Convento de S. Francisco de Évora e nas Universidades de Paris e Bolonha. Foi mestre de Teologia na cúria romana, onde exerceu também o cargo de procurador do bispo de Braga. Já perto do fim da vida, com cerca de 70 anos, regressou a Portugal, onde foi provincial dos Franciscanos Observantes. A sua obra maior é o Horologium Fidei, sendo ainda conhecido um outro texto de sua autoria: o Spiraculim Francisci Mayronis, siue Liber Distinctionum, que permanece manuscrito nas bibliotecas de Assis e Oxford.

O Horologium Fidei é um pretenso diálogo com o Infante D. Henrique, mais artificial que real, permitindo-nos interpretar uma parte muito substancial do panorama da cultura portuguesa do ponto de vista teológico-filosófico nos finais da Idade Média. Pretendendo ser antes de mais um tratado de teologia em que se analisa o símbolo dos Apóstolos, tem também um interesse relevante para a filosofia, porque a discussão apoia-se com frequência em argumentos de ordem racional.
Questões fundamentais que percorrem a cultura teológica e filosófica medievais são aqui exploradas com minúcia, como sejam as da relação entre a fé e o entendimento, entre a ciência divina e a liberdade humana, entre Deus o homem e a natureza no quadro preciso dos temas da imagem e semelhança bem como do exemplarismo bonaventurano, a antropologia no quadro da relação entre o corpo e a alma, a metafísica da criação, a questão do mal como privação, a cosmologia aristotélica e ptolemaica secundada pelos quadros alegóricos e simbólicos do naturalismo medieval, a questão das heresias cujos conteúdos vários são alvo de acérrima crítica tendo em vista a afirmação da unidade da igreja, o diálogo entre a cultura cristã e a filosofia pagã, deitando os mais eminentes filósofos da antiguidade no leito precursor do cristianismo.

Para a discussão destes temas lança mão de um conjunto muito vasto de autoridades, como era comum nesta época, de que se destacam Escoto, Sto. Agostinho, o Pseudo-Dionísio, Boécio, St. Anselmo e S. Boaventura.

Seleccionamos apenas alguns temas atendendo aos limites de espaço, começando pelo das relações entre a fé e o entendimento, cujo esclarecimento é essencial para o espaço da filosofia, bem como o da relação entre Deus, o homem e o mundo, que prolongaremos pela análise da antropologia e da questão do mal.

A transcendência da fé em relação ao intelecto constitui a pedra angular da sua mundividência, pois as verdades da fé não constituem decisões da razão. No entanto, como dissera St. Agostinho, é um dom da graça «acreditar» em Deus e «compreendê-lo», sendo que só entende quem previamente crê. Assim, a inteligência sem a fé está impedida de ascender à compreensão das coisas mais elevadas, embora tal limitação se não aplique ao horizonte das ciências particulares, com as quais a fé, no entanto, se não incompatibiliza. O que no fundo está em causa é a confluência da «perspicácia de inteligência» com a «recta consciência» que faltara no mundo da filosofia clássica.

Por isso, abrindo-se aos horizontes da escolástica, dirá também que há muitas coisas que se compreendem antes de nelas se acreditar, e nunca nelas se crê se antes se não entenderem, coisas que não dão origem à fé sem antes se propor um argumento a seu respeito, projectando o seu pensamento numa pluralidade de perspectivações, que culmina num ideal de salvação.

Noutro plano, depois de dissertar longamente sobre a essência de Deus e sobre a sua unicidade, aborda a questão da relação entre Deus e as criaturas no quadro da metafísica exemplarista, conciliando causalidade e expressionismo. De nenhum modo pode algo ser feito racionalmente se na mente do criador não preceder algo da coisa a fazer, como uma espécie de exemplar, ou seja, como forma, modelo ou padrão, lembrando expressão quase idêntica de St. Anselmo, no Monologion.

Terminamos com uma referência à vexata quaestio da relação entre a ciência de Deus e a liberdade do homem, na qual se equaciona a questão do mal, abordada na linha do De libero arbítrio de Sto. Agostinho. Se Deus tudo sabe, como pode dizer-se livre a vontade humana? Será admissível que tendo Deus presciência de que eu hei-de pecar, possa eu, no entanto, não pecar? Se Deus tudo pode, como permite o mal? Se tudo participa de Deus, participará igualmente o mal da sua divina essência? Se sabia que o homem ia pecar, porque razão o criou?

A tudo responde o Franciscano: tudo o que é contingente e mutável na ordem da natureza e do tempo é imutável na mente de Deus, pois que conhece os seres contingentes de forma não contingente, as coisas mutáveis de forma imutável, as futuras presencialmente, as temporais eternamente; é possível em si que o homem não peque, mas não é coadmissível que eu não peque tendo Deus presciência de que eu pecarei, pois se seguiria o absurdo de que aquele que tem presciência de tudo possa enganar-se e iludir-se; os agentes do mal foram criados bons por natureza, donde não ser Deus o autor do mal, pelo que este não pode ser considerado princípio do mal pelo facto de ter criado o seu agente, dado que este, enquanto existe é bom. Nada pode vir de Deus mau porque tudo o que existe em Deus é a sua essência e por essência Deus é sumamente bom, nele não há nenhum mal, nenhuma falha, nenhuma diminuição. O mal não radica pois num princípio, é um desvio, um alvo errado, uma falha de razão, uma debilitação da vontade, e aquilo que está totalmente privado de bem não é nada. O mal pertence-nos enquanto mal positivo, mas a título de uma debilitação dos bens que nos são próprios da qual somos responsáveis, por termos obliterado voluntariamente a nossa natural orientação para o bem.

As páginas do Horologium são ainda ricas pelas explanações a que o autor se entrega no âmbito da cosmologia, prolongando-se na expressão de um naturalismo muito preso à alegoria e ao simbolismo, abrindo a finitude da natureza a um significado que infinitamente a transcende.

Já na circunstanciada análise que faz das heresias, a sua preocupação maior é a de afirmar a unidade da igreja, misticamente referida à túnica inconsútil de Cristo, afirmando o ideal comunitário que a todos os fiéis deve unir em relação ao corpo de Cristo.

Obras
Horologium fidei: diálogo com o Infante D. Henrique, (edição portuguesa de Aires Augusto do Nascimento, Lisboa, 1997; Spiraculum Francisci Mayronis (manuscrito)

Bibliografia
F. Félix Lopes «À volta de Frei André do Prado», Colectânea de Estudos, 2 (1951), Braga, pp. 121-132; Mário Martins, «O livro que o Infante mandou escrever», Brotéria, 71 (1960), pp. 195-206; id., «O diálogo entre o Infante D. Henrique e Frei André do Prado», Revista Portuguesa de Filosofia, 16 (1960), pp. 281-295; António Domingues Sousa Costa, «Mestre Frei André do Prado, desconhecido escotista português do século XV», Revista Portuguesa de Filosofia, 23 (1967), pp. 293-337.

Pedro Calafate


© Instituto Camões 1998-2000