Época Medieval

Renascimento em Portugal

Sob o Signo das Luzes

A Filosofia Portuguesa do Séc. XIX
até à Proclamação da República
A Filosofia Portuguesa depois de 1910

O Infante D. Pedro

Irmão de D. Duarte e filho de D. João I, D. Pedro é, no plano da filosofia, o segundo pilar da Ínclita Geração, tendo ambos servido, sobretudo desde Oliveira Martins, para simbolizar os dramas de alternativa da nossa história. O Infante D. Pedro tem sido nomeado, com justiça aliás, como representante do cosmopolitismo e do Portugal moderno, oposto ao sedentarismo e ao espírito mais cavaleiresco de seu irmão. Viajante ilustrado pelos mais reputados centros universitários da Europa culta do século XV, ninguém mais do que ele pugnou pela abertura do país à dinâmica cultural europeia, sublinhando a cultura como a mais importante fonte da grandeza das nações. Entre as suas obras mais relevantes contam-se o Livro da Virtuosa Benfeitoria (escrito pelo seu confessor Frei João Verba, com base em texto inicial do Infante) e a Carta de Bruges, que aqui analisaremos em traços sucintos.



O primeiro aspecto a sublinhar é o de que, apesar da moldura modernizante com que tem sido lido, a sua mundividência é essencialmente medieval, bebendo nas grandes fontes da filosofia cristã de S. Paulo a S. Tomás de Aquino, passando por Sto. Agostinho e pelo Dionísio Areopagita, sem ignorar as fontes da cultura clássica como Platão, Aristóteles e sobretudo Séneca, que lhe deu o substracto mais relevante da sua filosofia moral.

Um dos tópicos salientes do seu pensamento assenta no conceito de grau ou hierarquia dos entes, correspondendo a uma ordem emanada da inteligência divina, mediante a qual a providência governa o mundo, esquema de vincada coloração neoplatónica.

Este é o eixo em torno do qual gira o conceito de benfeitoria. De facto, cada grau apresenta-se com uma deteminada carência de ser, «pois que do ser eternal é sempre minguado», carência que se determina pelos diferentes níveis de participação na perfeição do Ser eterno, pois que se as perfeições pertencem a Deus por essência, as criaturas possuem-nas somente por partiçipação, não deixando os homens de participar nesse estado geral de carência, tornando-os necessitados de socorro, logo, de benefício.

Define-se assim uma cadeia de colaboração e de ajuda entre os homens cuja base radica no amor que as criaturas naturalmente se devem e que por isso assume uma coloração vincadamente ética. Para o Infante, a essência do benefício, a sua causa formal, é a intenção de ajudar o próximo, tendo a sua raíz no querer da vontade, a qual «apenas se move a fazer cousa se ela for ou parecer boa». Assim, regressamos ao ponto inicial, pois entende o autor que Deus outorga participação da sua bondade a cada um segundo a sua própria natureza, pelo que a vontade humana não somente recebe de Deus perfeição para ser boa, mas também para fazer o bem. Repare-se que a referência ao facto de a vontade apenas se mover para fazer o que é bom ou parece bom, participa da pespectiva agostiniana do mal como privação, tema amplamente desenvolvido também por Dionísio Areopagita, no Tratado dos Nomes Divinos: o mal é uma ausência ou carência de bem, não sendo por isso um princípio ou uma potência.

Este tema do benefício e da entreajuda humana no quadro da sua existência social apresenta também uma vertente marcadamente política, pois são os poderosos que mais condições têm para praticar o benefício livre e voluntário, contribuindo para uma sociedade na qual as relações entre os homens não assentam apenas num plano jurídico mas também vincadamente paternalista, onde se evoca uma atmosfera familiar de fraternidade.

Reflecte por isso o Infante sobre as desigualdades sociais entre os homens, a par da sua identidade de natureza, para explicar a origem do domínio político como uma necessidade inerente à natureza social do homem, e do domínio servil como uma decorrência do pecado. O que no fundo procura fundar é um tipo de comunidade política que expresse um meio termo entre a comunidade que existiria se o homem não tivesse pecado e a comunidade posterior ao pecado, assente no domínio servil. O núcleo dessa nova comunidade social seria a sua doutrina do benefício.

O livro em causa é ainda um meio fecundo para aceder às doutrinas políticas da Geração da Avis, nomeadamente as que se referem à tese da origem popular do poder, que tendo origem mediata em Deus como autor da natureza social do homem, tem origem imediata na vontade dos homens reunidos em comunidade política, embora escamoteie a difícil questão do direito de resistência perante o desvirtuamento da acção dos governantes, preferindo invocar as virtudes da obediência e sobretudo a superioridade moral dos governantes, expressa numa aliança entre o poder e a sabedoria.

A este último tema se dedicará também na Carta de Bruges, escrita a seu irmão D. Duarte, em que critica asperamente a falta de cultura da nossa administração. Para o Infante, importa que «príncipe e sabedor sejam uma só cousa», embora separe sabiamente a cultura da pura erudição, pois que a cultura é a luz da razão que orienta e ilumina o homem e lhe define um horizonte de felicidade, da qual no fundo o poder é um meio.

A Carta de Bruges é uma crítica contundente à situação real do Estado Português, chamando a atenção de seu irmão, para o facto de ser pela cultura e pelo prestígio dos seus colégios e universidades que os estados se conseguem impôr no contexto das grandes nações do mundo.

Obras
Obras dos Príncipes de Avis, Porto, 1982 (contém: Livro da Virtuosa Benfeitoria, De Oficiis de Cícero (trad.), Carta de Bruges, edição de Artur Moreira de Sá, Lisboa, 1956.

Bibliografia
Pedro Calafate, «O Conceito de ordem natural no Livro da Virtuosa Benfeitoria do Infante D. Pedro», Metamorfoses da Palavra. Estudos sobre o pensamento português e brasileiro, Lisboa, 1998; Oliveira Martins, Os Filhos de D. João I; Afonso Botelho, «Infante D. Pedro», Logos-Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, Lisboa-S. Paulo, 1989-1992; VV.AA., Actas do Colóquio Dedicado ao Infante D. Pedro, Biblos, vol. LXIX, Coimbra, 1993; Diamantino Martins, «O sistema moral da Virtuosa Benfeitoria», em Revista Portuguesa de Filosofia, vol. 21, pp. 235-254; Id, «O "De Beneficiis" de Séneca, e a "Virtuosa Benfeitoria" do Infante D. Pedro» em Ibid., vol. 21, pp. 255-321; Elias de Tejada, «Ideologia e Utopia no Livro da Virtuosa Benfeitoria», em Ibid., vol. 3, p. 5-19.

Pedro Calafate


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