Época Medieval

Renascimento em Portugal

Sob o Signo das Luzes

A Filosofia Portuguesa do Séc. XIX
até à Proclamação da República
A Filosofia Portuguesa depois de 1910

D. Duarte


D. Duarte (pintura na Sala dos Capelos da Univers. de Coimbra)

É com D. Duarte e com o infante D. Pedro que a nossa língua assume elevada capacidade de expressão conceptual no plano da filosofia, no despontar do século XV. No caso de D. Duarte, interessa-nos sublinhar essencialmente o seu Leal Conselheiro, já por alguns considerado o primeiro ensaio filosófico escrito em língua portuguesa, devendo consultar-se igualmente o seu Livro de Horas, de interesse mais relevante no plano da espiritualidade.

Elaborado no início do século XV, altura em que Portugal começava já a viver a aventura da expansão marítima, constitui, como o próprio autor refere, um ABC de lealdade, com intenção didáctica, no plano da doutrinação ética e moral. Todavia, não há, neste tratado, uma sequência ordenada de conceitos e princípios, definindo um sistema concatenado. O que sobressai, e o que porventura o valoriza, é a sua forma coloquial, em consonância com o seu autodidactismo, fruto de uma elaborada capacidade de análise das situações concretas da existência humana, apresentadas «misturadamente e não assi por ordem».

Dirigido aos homens de corte, comporta uma finalidade prática, dando corpo ao princípio de que compete aos reis o ensinar, em virtude da sua maior prudência e sabedoria, não havendo pois uma preocupação especulativa e formal, procurando antes que «alguns por os conselhos e avisamentos que em este tratado serão escritos de mal fazer se refreiem».

A lealdade é o núcleo central que atribui coerência ao conjunto do texto, podendo mesmo considerar-se ser ela o "método" de pensamento do nosso rei, pois que «lealmente é todo escrito», distribuindo-se as fontes inspiradoras do seu pensamento em três planos: «a leitura de bons livros», «a conversação» e a «experiência do que tenho visto e sentido». Entre estes, são os dois últimos que lhe atribuem verdadeiramente originalidade e interesse. D. Duarte, como escreveu Joaquim de Carvalho, foi muito mais um sábio da vida do que um sábio do livro, podendo falar-se a seu respeito de um «humanismo primordial», pois, para conhecer o homem, melhor lhe pareceu não lê-lo nos livros, mas vê-lo e conhecê-lo pelo convívio e pelo diálogo directos, embora sem desprezar a intermediação da tradição cultural fixada pela escrita, dando corpo a um «humanismo de relação pessoal», que tanto marcaria o humanismo português no quadro da expansão e dos Descobrimentos.

O Leal Conselheiro é por isso o discurso ético-moral de um pensador através da vida: «sobre isto mais escrevo pelo que sinto e vejo na maneira de nosso viver, do que por estudo de livros ou por ensino de letrados», tudo posto «na geral maneira de nosso falar», partindo das «coisas chãs» para as «ideias direitas».

Apesar das suas muitas aportações pessoais, cumpre no entanto dizer que estes tratados de vícios e virtudes eram comuns na literatura europeia da época, incluindo o tratamento dos temas de um ponto de vista não exclusivamente teórico mas do ponto de vista da sua descrição concreta, intimamente ligada às condições da vida prática. Com efeito, o nosso rei possuia na sua biblioteca uma obra deste tipo, o Caderno das Confissões de João Calado, citando ainda outros dois, o Pomar das Virtudes, de André Paz, e o Livro das Confissões de Martim Perez, para além de muitos outros que então proliferavam na literatura europeia.

É o estudo concreto destas questões que abre portas ao exame minucioso da consciência individual, onde os pecados e os sentimentos se manifestam na diversidade das circunstâncias. No caso de D. Duarte, ficaram célebres as suas análises dos sentimentos da tristeza e da saudade, onde revelou inusitado poder introspectivo.

Neste último caso, transformou a saudade em problema do espírito, surgindo-lhe esta como um sentimento indizível, devendo cada qual consultar o seu coração «no que já por desvairados feitos tem sentido», dado que «nos livros nada vem». Trata-se de um sentimento que parte do «coração» mas que é autónomo e superior aos seus efeitos, sejam eles a tristeza, o nojo, o prazer, o desprazer ou o aborrecimento, podendo assim gerar efeitos contraditórios, pois que a variabilidade é um atributo do coração. Logo, se as suas manifestações têm um conteúdo psicológico preciso, como é o caso da tristeza, a saudade em si é um problema do espírito que não se define na base de um conceito preciso, devendo antes cada um proceder interrogativamente com recurso à experiência interior.

De inegável valor humano, sobretudo pela autenticidade do testemunho, é também a análise que nos legou do «humor merencórico», descrevendo-nos com grande realismo as várias fases da depressão que o acometeu quando seu pai lhe legou os negócios do reino, após a sua partida para Ceuta.

No Leal Conselheiro podemos ainda encontrar uma interessante reflexão do autor sobre o seu ofício de rei, muito na linha do Regimento dos Princípes de Frei Gil de Roma, ao qual atribui um fundamento ético e uma finalidade espiritual, assente nas quatro virtudes cardinais e nas três virtudes teologais.

Obras
Leal Conselheiro e Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela, edição crítica de J. Piel, Lisboa, 1942-1944; Obras dos Princípes de Avis, Porto, 1982.

Bibliografia
Sílvio Lima, Ensaios sobre o Desporto, Lisboa, 1937; Francisco da Gama Caeiro, A Cultura Portuguesa no último Quartel do século XIV; Afonso Botelho, D. Duarte, Lisboa, Verbo, Colecção Pensamento Português, 1993 (contém bibliografia exaustiva); id., D. Duarte e a fenomenologia da saudade, Lisboa, 1951; id., Andar Direito, Lisboa, 1951; Pinharanda Gomes, «D. Duarte do "Sootil Entender"», Cultura Portuguesa, nº2, Janeiro-Fevereiro de I982; Manuel Rodrigues Lapa, Lições de Literatura Portuguesa, Lisboa, 1964; Costa Pimpão, História da Literatura Portuguesa, Coimbra, 1947; Joaquim de Carvalho «Cultura Filosófica e Científica» História de Portugal (chamada de Barcelos), Lisboa, 1942.

Pedro Calafate


© Instituto Camões 1998-2000