Época Medieval

Renascimento em Portugal

Sob o Signo das Luzes

A Filosofia Portuguesa do Séc. XIX
até à Proclamação da República
A Filosofia Portuguesa depois de 1910

Pedro da Fonseca e os conimbricenses

Com a entrega do Colégio das Artes à Companhia de Jesus, em meados do século XVI, inicia-se um novo momento do panorama da filosofia em Portugal, fortemente marcado pela acção dos jesuítas, sobressaindo neste quadro a monumental obra dos conimbricenses, e, antes destes, de Pedro da Fonseca.
Foi sobretudo devido ao anátema da decadência do seiscentismo, lançado no século seguinte pelos pombalistas que se geraram duas contrapropostas que tanto dificultaram o diálogo posterior no seio da cultura portuguesa. É por esta razão que os jesuítas têm sido considerados ora como heróis, ora como monstros de perversidade e corrupção, num esquema que certamente dificultou a apreciação do valor filosófico de Pedro da Fonseca e dos conimbricenses, tanto mais que o esquema da depreciação do valor destes era feito mediante o confronto entre os grandes paradigmas da ciência moderna e os da escolástica, ainda que reformada. Ora, sabendo-se o quanto as conquistas da ciência e da técnica viriam a deslumbrar os pensadores dos séculos XVII e XVIII, foi extremamente fácil condená-los no tribunal da história.

O movimento que deu origem ao Curso Filosófico Conimbricense radica na própria finalidade da Companhia de Jesus, como ordem de professores, essencialmente voltada para o ensino e, por isso, preocupada com a elaboração de compêndios que de modo tão sistemático quanto possível, e aproveitando as inovações técnicas da imprensa que superavam a época morosa do manuscrito, colocassem ao alcance dos estudantes um quadro de saber que correspondesse aos seus desígnios.

A acrescentar às mais profundas razões de princípio, bem como à própria ordem expressa de Roma, esta foi uma das razões que contribuiram poderosamente para a eleição da filosofia aristotélica como ponto de partida para um fecundo comentário, que, em aspectos fundamentais, conseguiu abrir novos horizontes à escolástica.

Aristóteles foi considerado por Pedro da Fonseca e pelos conimbricenses como mais universal em todos os sentidos. Na física, na lógica, na ética e na metafísica seduzira-os a ordem e a sistematicidade do Estagirita, entregando-se a um laborioso trabalho de comentário, que não de pura e simples repetição, do pensamento do filósofo grego, dando corpo a um movimento filosófico de largas repercussões europeias, sendo esse um dos momentos raros em que Portugal não permaneceu à margem de uma intervenção eficiente no panorama geral da filosofia, haja em vista as numerosas edições do Curso Conimbricense por toda a Europa, sobretudo na Alemanha, como também a fácil penetração do curso na cultura ultramarina, nomeadamente no Brasil, devido aos numerosos colégios da Companhia, para não falar da longínqua China.

Da elaboração do Curso foi inicialmente encarregado Pedro da Fonseca, juntamente com outros dois inacianos, embora o projecto da sua participação tenha vindo a abortar.

Em todo o caso, não desaproveitando o seu labor no plano da filosofia aristotélica, Pedro da Fonseca editou dois importantes títulos neste domínio: as Instituições Dialécticas (1564) e os Comentários à Metafísica de Aristóteles (1589).

A primeira é um comentário ao Organon de Aristóteles, e destinava-se a servir de propedêutica ao ensino da lógica, podendo considerar-se uma introdução à lógica aristotélica, na medida em que Pedro da Fonseca, ao contrário de muitos renascentistas, reivindica a sua articulação com a analítica. Em todo o caso é de sublinhar a sua abertura às grandes questões do método, que tanto sensibilizaram Pedro Ramo e Filipe Melanchton, entendido como ordem de exposição de conteúdos de ensino, apresentando-nos uma ampla exposição sobre este tema.

Já nos Comentários à Metafísica de Aristóteles, obra editada em dois volumes, é de destacar, relativamente à tradição escolástica, que Fonseca rejeita a noção de uma filosofia primeira como serva da teologia, entendendo-a antes como rainha das ciências (omnium scientiarum domina), aprofundando ainda mais esse distanciamento relativamente à teologia pela ausência de referências à teologia natural, que tinha por função o conhecimento das coisas invisíveis de Deus através das coisas visíveis, ou seja, o conhecimento dos atributos divinos através do livro das criaturas.

Estes dois tópicos, que como referiu um dos seus mais eminentes estudiosos, António Manuel Martins, não têm sido convenientemente sublinhados, revelam bem a autonomia do pensamento de Fonseca, e a real distância a que se encontrava de uma atitude de subserviente repetição, tanto mais que no esquema de estudos dos colégios da Companhia, a Filosofia seguia-se ao ensino do Latim e antecedia, à maneira de preparação, a Teologia, como coroa do saber.

Devemos ainda sublinhar a posição de Fonseca perante a difícil questão da relação entre a ciência divina e a liberdade humana, exposta na doutrina da chamada «ciência média», a qual, tendo sido amplamente exposta por Luis de Molina, foi primeiro esboçada por Pedro da Fonseca. Esta questão gerou uma acesa controvérsia nos finais do século XVI e princípios do século XVII entre o chamado banezianismo e o molinismo. O primeiro considerava que Deus conhece todas as coisas no seu estado de possibilidade através da ciência de simples inteligência, vendo, através da ciência de visão, as coisas futuras absolutas, entendendo que as coisas passam do estado de mera possibilidade ao de futuro absoluto por um decreto predeterminante de Deus, ou seja, que entre as múltiplas possibilidades dos actos humanos, Deus predetermina um só, ao qual o homem não pode resistir.

No entanto, não satisfeito com esta solução, que a seu ver punha em causa a liberdade do homem, Fonseca fala-nos de uma ciência intermédia entre as duas sobreditas, a «ciência média». Para o autor português, Deus contempla o campo da possibilidade através da ciência de simples inteligência; pela ciência média conhece o âmbito da futuribilidade, entendendo por este termo tudo o que o homem faria na multiplicidade das circunstâncias com que se deparasse; pela ciência de visão Deus vê qual o acto humano que ultrapassa os estados da possibilidade e da futuribilidade para se transformar num futuro absoluto.

Quanto ao Curso Conimbricense propriamente dito, corpo fundamental da chamada Segunda Escolástica, editado a partir de 1592, com o título de Comentários do Colégio Conimbricense da Companhia de Jesus, amplia este esforço de comentário e também de edição latina dos textos de Aristóteles, embora sem incidência relevante sobre a metafísica, privilegiando sobretudo os domínios da física, da lógica e da ética, dele se tendo encarregado privilegiadamente os padres Manuel de Góis, Sebastião do Couto e Baltasar Álvares.

Para se bem compreender o ambiente intelectual em que actuaram Fonseca e os Conimbricenses, deve ter-se em conta que a filosofia escolástica se identificou, desde sempre, com o ideal de uma filosofia perene, ou seja, com a noção de um património absoluto de verdades, de natureza transcendental, passíveis de serem traduzidas numa síntese, que o esforço da razão dos filósofos vai depurando e clarificando, na base de uma cooperação efectiva e, portanto, de um esforço interindividual.

Quer isto dizer que para a escolástica a reflexão de cada filósofo não é um esforço criativo a partir de um grau zero, supondo antes a importância da transmissão de um património doutrinal, que se identifica afinal com a ideia de tradição, num árduo trabalho de cooperação intelectual. Com este aspecto se articula também a importância da transmissão desses conteúdos doutrinais e desse património perene de princípios, reduzidos a síntese, no âmbito escolar e pedagógico, longe portanto das oposições, tantas vezes simplistas, entre passado e presente. Mas não implica isto que o actividade dos filósofos se resuma a uma mera repetição, pois se abre reconhecidamente o espaço, certamente limitado por essa prévia opção pela verdade, para uma depuração progressiva desse património comum, como já notámos a propósito de Fonseca, nomeadamente através das «quaestiones», na qual se procedia ao confronto de opiniões diversas, optando Fonseca e os conimbricenses pela linha tomista.

Nesse seu esforço de tradução, comentário e transmissão da obra aristotélica, à luz de uma clara opção pelo tomismo e em detrimento do escotismo e do nominalismo, os mestres conimbricenses sobressairam no panorama da história da filosofia sobretudo pelo método claro, breve, e tão simples quanto possível, sempre tendo em vista um ideal pedagógico de transmissão eficaz desses conteúdos doutrinais, embora na base do rigor filológico e da fidelidade aos textos, que não impedia, contudo, o debate e a discussão das opiniões pró e contra e, sobretudo, a discussão e o confronto com os novos avanços científicos dos quais de modo algum permaneceram alheados, como mais tarde se pretendeu fazer crer.

Obras
Pedro da Fonseca, Institutionum dialecticarum Libri Octo, 1564. Nova edição: Pedro da Fonseca, Instituições Dialécticas, introdução, estabelecimento do texto, tradução e notas de J. Ferreira Gomes, dois volumes, Coimbra, 1964; Pedro da Fonseca, Commentariorum in libros metaphysicorum Aristotelis I (Roma, 1577); II (Roma 1589); III (Évora, 1604); IV (Lião, 1612); Pedro da Fonseca, Isagoge Philosophica, Lisboa, 1591.

Curso Conimbricense: Comentarii Collegii Conimbricensis Societatis Jesu in octo libros Physicorum Aristotelis Stagiritae (Coimbra, A. Mariz, 1592); Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis Jesu in quattuor libros De Coelo Aristotelis Atagiritae (Lisboa, S. Lopes, 1593); Commentarii Collegii Conimbricensis S.J. in libros Metereororum Aristotelis Stagiritae (Lisboa, S. Lopes, 1593); Commentarii Collegii Conimbricensis S.J. in Libros Aristotelis qyui Parva Naturalia appellantur (Lisboa, S. Lopes, 1593); In libros Ethicorum Aristotelis ad Nicomachum aliquot Conimbricensis Cursus dipautationes, in quibus praecipua quaedam Ethicae disciplinae capita continentur (Lisboa, S. Lopes, 1593); Commentarii Collegi Conimbricensis S.J. in duos libros de generatione et corruptione Aristotelis Stagiritae (Coimbra, A. Mariz, 1597); Commentarii Collegii Conimbricensis in tres libros De anima Aristotelis Stagiritae; Commentarii Collegii Conimbricensis S.J. in universam Dialecticam Aristotelis (Coimbra, D.G. Loureiro, 1606)

Bibliografia
Sobre Pedro da Fonseca
Miguel Batista Pereira, Ser e Pessoa. Pedro da Fonseca I. O Método da Filosofia, Coimbra, 1967; C.A. Ferreira da Silva, Teses Fundamentais da Gnoseologia de Pedro da Fonseca, Lisboa, 1959; V.S. de Sousa Alves, «O espaço e o tempo imaginários em Pedro da Fonseca» in Studium Generale, Porto, 8 (1961), pp, 49-61; A.A.. Coxito, «Método e ensino em Pedro da Fonseca e nos conimbricenses», in Revista Portuguesa de Filosofia, 36 (1980), pp. 88-107; id., «Pedro da Fonseca - a lógica tópica», ibid., 38 (1982), pp. 450-450; Cassiano Abranches, «Origem dos comentários à metafísica de Pedro da Fonseca», Revista Portuguesa de Filosofia, 2 (1946), pp. 42-57; id., «Pedro da Fonseca e a renovação da escolástica», ibid., 9 (1953), pp. 354-374; id., «A teoria dos universais em Pedro da Fonseca» Ibid., 11-2 (1955), pp. 769-778; id., «A causa exemplar em Pedro da Fonseca», Ibid.,14 (1958), pp. 3-10; Diamantino Martins «Essência do saber filosófico segundo Pedro da Fonseca», in Ibid., 9 (1953), pp. 396-405; S. Tavares, «Fonseca e a Ciência Média», ibid., 9 (1953), ppp. 418-427.

Sobre os Conimbricenses
A.A. Coxito, «O problema dos universais no curso filosófico conimbricense», in Revista de Estudos Gerais da Universidade de Moçambique, 3, série 5, 1966 , pp. 5-62; id., A teoria das «Ciências» no curso filosófico conimbricense, Coimbra, 1977; J. Bacelar e Oliveira, «Filosofia escolástica e cursos conimbricense» in Revista Portuguesa de Filosofia, 16 (1960), pp. 124-141; id, «Sobre a noção de ciência na lógica conimbricense», ibid., 19 (1963), pp. 278-285; Lúcio Craveiro da Silva, «Originalidade da escola conimbricense em Filosofia» in Itinerarium, 6 (1960), pp. 11-18; A. Banha de Andrade, «A renascença nos conimbricenses», in Brotéria, 37 (1943), pp. 271-284; id., «Teses fundamentais de psicologia nos conimbricenses», in Filosofia, 13 (1957), pp. 32-69.

Pedro Calafate


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