Época Medieval

Renascimento em Portugal

Sob o Signo das Luzes

A Filosofia Portuguesa do Séc. XIX
até à Proclamação da República
A Filosofia Portuguesa depois de 1910

Frei João de São Tomás

João de São Tomás é uma figura quase desconhecida na história do pensamento português sendo a leitura da sua vasta produção porventura a melhor forma de avaliar o seu contributo no âmbito da filosofia. Esta actividade, contudo, desmotiva o leitor melhor intencionado, ao verificar que o legado de João de S. Tomás se organiza numa quantidade considerável de volumes, escritos no latim da Renascença.

João Poinsot nasce em Lisboa, em Julho de 1589, filho mais novo do casal Pedro Poinsot e Maria Garcês. O seu pai, austríaco, era secretário do Cardeal Alberto, Arquiduque da Austria, sendo sua mãe portuguesa. Pedro Poinsot, obrigado a seguir o Arquiduque nas suas deslocações para Madrid e Flandres, terá entregue a educação de João e Luís, seu irmão mais velho, aos familiares residentes em território português. É assim que, tendo ingressado em Coimbra para realizar os seus estudos, João obtém aos 16 anos o grau de bacharel em Artes. O curriculum escolar então em vigor era muito semelhante ao instituído por D. João III para o Colégio das Artes, sendo o magistério de Coimbra dos princípios do séc. XVII de predomínio jesuíta e marcado cunho aristotélico. João Poinsot inicia, ainda em Coimbra, o bacharelato em Teologia, entre 1605 e 1606, mas em 1607 dirige-se para Lovaina, onde prossegue os seus estudos. Assim, a primeira formação académica de João Poinsot desenvolve-se à luz dos Conimbrisenses.

Em 1559, os Estatutos da Univ. de Coimbra impunham quase como leitura exclusiva as seguintes obras de Aristóteles: Categoriae, De interpretatione, Analytica priora, Analytica posteriora, Topica, Elenchi, Ethica, Physica, De Coelo, De generatione, Meteora, De Anima e Metaphysica (Cf. A.COXITO, "Aristotelismo em Portugal", Logos, I, p.439). Este elenco de obras estará presente quase sem alteração no Cursus Philosophicus cuja edição João Poinsot iniciará em 1631, compendiando as suas Lectiones de Madrid-Alcalá. Por sua vez, o Curso Filosófico Conimbricense começara a redigir-se ainda ao tempo de Pedro da Fonseca, tendo alcançado mais de uma centena de edições, a maior parte delas impressas além-fronteiras. Por isso é de crer que João, além de se ter formado à sua sombra, tivesse oportunidade de consultar directamente aquela obra. Contudo, o espírito do seu Cursus Philosophicus mantém-se intencionalmente à margem das polémicas que envolviam o aristotelismo conimbricense. João terá conhecido as teses de Fonseca e de Luís de Molina nos comentários daqueles ao Estagirita, bem como os conflitos por elas gerados.

Por sua vez, em Lovaina toma contacto com os imbróglios do augustinianismo de Jansénio, seu condiscípulo. João Peixoto - assim ficou conhecido na Bélgica - à hora de decidir sobre o rumo a imprimir à sua vida e, com ele, ao seu percurso intelectual, tendo conhecido as posições filosóficas de jesuítas e franciscanos, opta por professar na Ordem Dominicana, tomando o nome de João de S. Tomás, na intenção da mais estreita fidelidade ao espírito do Doutor Angélico.

Os escritos de João de S. Tomás podem dividir-se em três grupos: filosóficos, teológicos e pastorais. Existem também alguns escritos breves que integram fundamentalmente respostas a consultas que lhe eram dirigidas pessoalmente ( Sobre estes últimos, v. Beltrán de HEREDIA, "Dictámenes y escritos inéditos del Maestro Juan de Santo Tomás", La Ciencia Tomista, 69 (1945) 288-341). As obras filosóficas abrangem quase todas as matérias que compunham o ciclo escolar de filosofia do seu tempo. Com efeito, transcorrido um ano sobre o seu noviciado no convento de Atocha, João é chamado a ensinar Filosofia e Teologia aos alunos da sua congregação, ministério que exerceu durante cerca de 17 anos, primeiro em Madrid e depois em Plascença (sudeste de Espanha).

Em 1625 regressa a Madrid, ao ser nomeado regente do Colégio de S. Tomás na Universidade de Alcalá de Henares (Complutense), onde permaneceu lente das cátedras de Filosofia e Teologia até 1643. Os seus escritos são, portanto, a compilação do material empregue na docência e o seu conteúdo é indissociável deste labor que apaixonava o filósofo português.

O Cursus Philosophicus compreende duas partes: Lógica e Filosofia da Natureza. João de S. Tomás toma como base de exposição os livros de Aristóteles mas segue fielmente a doutrina contida nos comentários do Mestre de Aquino (Cursus Philosophicus Tomistici secundum exactam, veram, et genuinam Aristotelis et doctoris angelici mentem, é o título que lhe atribui a 2ª ed.: Colónia, 1638). A Prima Pars da Lógica contém lições de Lógica formal onde se expõem e discutem as distintas operações do intelecto, a fim de fixar as regras indispensáveis para o labor da ciência especulativa.

A Secunda Pars comenta os textos curriculares: i) a Isagoge de Porfírio, tratando a questão dos predicáveis, seguindo a divisão em cinco universais e analisando-os em particular; ii) as Categorias, onde expõe a doutrina da analogia do ser, considerando os próprios predicamentos e as relações de oposição e prioridade; iii) o Peri Hermenias, ocupando-se da natureza e divisão do sinal e, em especial, do signo formal; iv) os Analíticos Posteriores, onde trata a natureza, pressupostos e efeito da demonstração. Sendo este último a ciência, João de S. Tomás ocupa-se da sua natureza e divisão.

Por sua vez, a Philosophia Naturalis divide-se em quatro partes: i) análise do ente móbil, noção comum, e comentário aos 8 livros da Física de Aristóteles; ii) comentário ao De Coelo et Mundo de Aristóteles ( sabe-se que João de S. Tomás o redigiu, mas dele não há registo em nenhuma edição ou códice); iii) trata do ente móbil corruptível comentando o De Generatione et Corruptione do Estagirita, com um Apêndice sobre os Meteoros; iv) trata do ente móbil animado segundo o De Anima de Aristóteles.

Se atendermos ao percurso biográfico e académico de João de S. Tomás é fácil verificar que este autor se inscreve na tradição escolástica, designadamente naquele período que se veio a designar commumente como a Segunda Escolástica. O seu dealbar deve-se essencialmente à necessidade sentida por parte dos pensadores medievais de ter à disposição um instrumento que lhes permitisse um maior aperfeiçoamento da ciência que tem Deus por objecto, a saber, a Teologia. Este instrumento encontram-no, sobretudo, na filosofia platónica, herança do período patrístico, e na lógica e metafísica aristotélicas, através da introdução progressiva das obras do Estagirita no Ocidente, entre os séculos X e XIII.

O saber filosófico assim talhado exercia-se em função da Teologia, desenvolvendo-se inicialmente nas escolas catedralícias e monásticas e posteriormente, quando da sua fundação, nas universidades. Ora, as características do saber escolástico, quer quanto ao objectivo quer quanto ao método, confluem na obra de João de S. Tomás, produzida já em pleno Renascimento. No seu Cursus Philosophicus assume-se claramente que a filosofia é uma propedêutica à Teologia - o princípio da "philosophia ancilla theologiae", sempre criticado pelos que o consideram desintegrando-o do seu contexto histórico e pelos que reduzem a verdade à relativa certeza do saber dito científico.

Do mesmo modo, o Doutor Profundo - nome com que se inseriu na tradição este filósofo português - recorre à lógica aristotélica para estabelecer as regras do pensamento e assume a metodologia do Comentário, resolvido em quaestiones integradas nas Summulae, paradigmático da Escolástica. O Cursus Theologicus, por seu turno, inscreve-se na tradição da Escolástica Renascentista que multiplica os comentários às Sumas. João de S. Tomás dedicar-se-á a comentar a Suma do Mestre de Aquino eximindo-se das querelas que envolviam sobretudo as escolas jesuítas e fransciscanas.

O nosso filósofo tinha bem presentes as teses de Luís de Molina e Pedro da Fonseca, bem como os exageros de Jansénio, nomeadamente no âmbito da controvérsia De auxiliis. O ambiente intelectual respirava ainda as consequências do Concílio de Trento. Amante da verdade, mente serena e desagradada da polémica, acolhe-se à sombra da autoridade do Doutor Angélico. De facto, desde o Capítulo Geral de Saragoça (1309), a formação filosófica-teológica dominicana ficava definida com rigor: os professores seguiriam S. Tomás de Aquino e a sua interpretação de Aristóteles; os alunos cursariam 3 anos de Lógica, 2 de Filosofia Natural e 4 de Teologia. Nove anos de estudo lendo essencialmente as obras do filósofo de Aquino na sua pureza original, imune e expurgado de nominalismos, molinismos ou humanismos, nascidos fora da Ordem Dominicana.

No séc. XVII, a estas leituras desviadas juntam-se os Comentários dos jesuítas que - livres de um voto de compromisso e lealdade ao pensamento do Aquinate - se embrenham igualmente na leitura dos seus escritos. Com efeito, em 1567 Pio V proclamara Tomás de Aquino Doutor da Igreja, pelo que o nosso filósofo assumia a metafísica do Angélico por um motivo de dupla fidelidade- à razão e à fé. Por isso, não vê melhor caminho do que seguir o seu Mestre para o exercício de um saber que pretende harmonizar essas duas dinâmicas do intelecto humano, convergentes numa mesma fonte: a Verdade (Cf. C.Th., I, Tractactus de Approbatione, disp. I, a.2. ). Para alcançar este objectivo João de S. Tomás expõe as notas características do verdadeiro tomista, pretendendo traçar um caminho que desfaça erros que - na opinião de alguns teólogos seus contemporâneos - radicavam precisamente no pensamento do Angélico.

No Tract. Approb. ( Cf. disp. II, a. 5, in fine ) afirma apenas ser seu objectivo tecer algumas considerações gerais sem alvejar pessoas determinadas, pois "(?) uns e outros suaram em busca da verdade e assim ajudaram-nos a descobri-la. Contudo, é preciso que nos fiquemos antes pelos mais seguros, ou seja, devemos preferir a opinião dos que atingiram a verdade com olhos mais certeiros". Discorrendo sobre os multíplices modos de aprovação da doutrina de Tomás de Aquino pela Igreja Romana e sobre o valor da Suma Teológica, dedica-se igualmente a discutir as posições que considera serem efeito de uma leitura adulterada do pensamento do Doutor Angélico.

Estes desvios dão origem às theologorum altercationes que só serão vencidas por um método rigoroso de obediência ao critério tomista. João define quais os "sinais do discípulo de S. Tomás" - i) trabalhar na linha de sucessão dos intérpretes considerados verdadeiros discípulos tomistas (de Cayetano a Sotto mas sempre dentro da ordem dominicana); ii) apegar-se à doutrina tomista e não poupar esforços na sua defesa; iii) expôr a doutrina do mestre e eximir-se de opiniões pessoais, sem procurar a fama da novidade; iv) aceitar as conclusões do mestre sem rejeitar as suas razões; v) defender a unidade da doutrina, entre os discípulos. Estes sinais são reductíveis a dois: seguir a doutrina de S. Tomás e empenhar-se no seu desenvolvimento. Duas são, também, as virtudes deste Tratado. Por um lado, ele mostra a autoridade que S. Tomás adquirira entre filósofos e teólogos e os diferentes níveis de reconhecimento que lhe foram tributados, à época deste seu discípulo fiel. Por outro, porventura é ele um meio que permite entender por que motivo a corrente neo-tomista contemporânea - a que se associam, entre outros, nomes como Jacques e Raïssa Maritain ou E. Gilson - tenha descoberto em João de S. Tomás um fundamento sólido para apoiar um projecto de continuidade.

De acordo com a mundividência deste filósofo português, a Teologia é o saber supremo. Por isso, a natureza de Deus e os seus modos de relação com o homem e o mundo serão temas de que se ocupará em particular. É esta a vocação que o Doutor Profundo atribui à actividade especulativa, para ele indissociável tanto da tarefa docente como da leitura meditada da Tradição. "A Filosofia - escreve - considerada em toda a extensão do seu significado, abraça todo o saber. E por isso se diz ser o amor ou a amizade do saber (?). A Filosofia é um saber genérico abraçando em si a ciência natural que nos é acessível, especialmente a especulativa, cujo amor é propriamente o do saber" (C. Phil.,Phil. Nat., I, Proem.). Engloba três partes: o saber natural, a Matemática e a Metafísica, sustentadas na Lógica que o filósofo considera não como objecto de conhecimento especulativo ou contemplativo mas como instrumento da própria especulação. Assim, desmistificando a opinião dos que consideram ineficaz um tal horizonte para a filosofia, o Cursus Philosophicus recolhe, entre outras, duas virtudes essenciais. Por uma parte, no âmbito da Lógica, João soube estabelecer claramente as regras que direccionam a rectidão do pensar, esclarecendo que a sua aprendizagem é um dever para o homem, pois lhe permite superar o estado de ignorância disponibilizando-se para aceder à contemplação da Verdade, objecto último da Sabedoria.

Reconhecendo o valor da produção deste filósofo, as virtualidades e desenvolvimentos da Lógica de João de S. Tomás têm despertado um renovado interesse entre os estudiosos da filosofia analítica contemporânea. De peculiar relevo se mostra a teoria do signo explanada pelo Doutor Profundo pelas suas consequências ao nível da filosofia da linguagem e da semiótica (V. John DEELY, Tractactus De Signis: The Semiotics of John Poinsot. Univ. California Press, 1985). Por outra parte, se na Lógica João discute a operatividade do predicamento relação a propósito da função do signo, na Filosofia da Natureza explana os principais temas da metafísica. Ao analisar a natureza da substância aí se define e se discute a composição hilemórfica e a distinção entre essência e existência. O conteúdo dos dois Cursos, Filósofico e Teológico, estabelece, assim, uma relação de complementaridade dinâmica que abrange com profundidade e consistência todos os elementos para a constituição de um verdadeiro sistema filosófico, uma vez que João de S. Tomás investe no âmbito da gnosiologia, da metafísica, da filosofia da linguagem e, inclusivamente, da ética e da estética. Porém, todos eles estão já embrionariamente contidos na sua explanação sobre a Lógica, comprovando-se que o filósofo possui uma mundividência unitária e sólida (v. gr., a recta compreensão da função instrumental do sinal permitirá a João de S. Tomás um desenvolvimento fecundo da sua teologia sacramentária, contornando os desvios advindos tanto do protestantismo como do jansenismo). Do mesmo modo, a Philosophia Naturalis do Doutor Profundo não se limita a reiterar o conteúdo da Física de Aristóteles, uma vez que nela se evidenciam os grandes desafios propostos à metafísica. Por isso, quando João aborda questões como a simplicidade de Deus e a composição das criaturas (Cf. C.Th, I, q.3) está munido das suas próprias teses para enfrentar posições tão díspares como as defendidas sobre o mesmo assunto por Scoto, Vasquez, Suarez, Molina, entre outros: "O ser - escreve - é o efeito formal da forma e a forma é o que dá o ser da coisa. Porém o efeito formal não se distingue da forma, portanto também a existência ou o ser não se distingue da própria forma" ( C.Th, I, q.3, disp. 4, a.3 ). A existência não é nem uma relação acidental, nem uma denominação extrínseca, nem um modo, pois requer uma dependência intrínseca e real. Exige, portanto, um fundamento absoluto que não pode ser a essência assumida apenas em função da quididade. A existência – o acto de ser, recebido na forma - precede a essência e de outro modo não há realidades ( Cf. C. Phil., I, q.7, a. 4). Por sua vez, a questão central de toda a gnosiologia - a resposta à pergunta "o que é a verdade?" - é abordada no C.Th., I, q. 16. Em sentido genérico, a verdade abrange três domínios: i) o intelecto, onde se forma e se conhece; ii) o ente, onde se fundamenta, porque sem entidade não há verdade; iii) o bem que se funda na perfeição do ente e por isso sucede à verdade. Em sentido próprio, a verdade é Deus. Ora, estando a razão formal da verdade no intelecto, este abre-se naturalmente à imensidão do conhecimento do ser divino e à comunhão da perfeição de Deus, a que se segue a felicidade (Cf. C. Th. I, q. 16, a.1-5).

João de S. Tomás viabiliza à inteligência humana a investigação da realidade em plenitude, sem limitar ou compartimentar o saber. A vocação do homem é, afinal, a abertura ao ser e a filosofia será por excelência a actividade que realiza essa vocação. Por sua vez, se o ser se manifesta maximamente em Deus, será no conhecimento cujo termo é a dilecção do divino, cujo efeito é a comunhão sapiencial, que o homem alcançará a perfeição plena da sua quididade. É esta a espinha dorsal da antropologia que serve de base ao Cursus Theologicus. O expoente máximo desta proposta resume-se porventura no Tratado sobre os Dons do Espírito, cume onde converge uma análise exímia da natureza de Deus e da capacidade humana de atingir a bemaventurança na relação com o Inefável. Desde esta perspectiva, a mundividência deste filósofo estende-se também a uma análise das condições de possibilidade da experiência mística (Cf. C.Th., I, q. 67-70).

João de S. Tomás acabou os seus dias na corte do rei Filipe IV de Castela, ocupando o cargo de confessor e conselheiro régio (1643), expressamente contra a sua vontade, esgotados todos os argumentos de rejeição, entre eles a alegação da sua nacionalidade: português que era, seria má política tê-lo no palácio do Rei de Castela, a braços com as rebeliões de Portugal e Catalunha. João Poinsot, tomado pela febre, morre em Julho de 1644, em Fraga, enquanto acompanhava o Rei numa expedição.

Bibliografia Sumária
1) Obras: A única edição completa dos Cursus de João de S. Tomás é a ed. Vivès, Paris, 1883-1886.Ed. mais recentes: C.Phil., Vol.1-3, Marietti,Turim, 1930-34. C.Theol,Vol.1-4(inc.), Solesmes,1931-1964.
2) Estudos: Maritain, J.: Distinguer pour Unir ou les Degrés du Savoir, DDB, Paris, 19637. Gomes, J. Pinharanda, João de S. Tomás na Filosofia do séc. XVII, Lisboa, 1985; Id. Antologia de Estudos, Lisboa, 1985. Silva, P.: "João de S. Tomás", in Logos, 3, 1987, pp. 53-57.

Paula Oliveira e Silva


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