Época Medieval

Renascimento em Portugal

Sob o Signo das Luzes

A Filosofia Portuguesa do Séc. XIX
até à Proclamação da República
A Filosofia Portuguesa depois de 1910

D. João de Castro

Às palavras de Pedro Nunes expressas no De crepusculis, onde refere que meditando e investigando descobrira coisas que em parte alguma lera e que não mereceriam crédito se não fossem demonstradas, poderemos associar as de D. João de Castro, Vice-Rei da Índia, no seu Roteiro de Lisboa a Goa : «neste roteiro vão escritas muitas coisas que parecem estranhas e impossíveis, as quais escrevi medrosamente, não porque delas não fosse mui certificado, mas por receio que tive de sair da opinião comum».

Estas palavras dão bem nota do ambiente em que se moveram neste século XVI os nossos homens de ciência, os quais, sem ambições de ruptura com os modelos da ciência antiga, procuraram alargar e depurar os horizontes da filosofia natural, mediante, como dizia D. João de Castro, «a muita experiência dos modernos e principalmente a muita navegação de Portugal». D. João de Castro é porventura o mais importante dos nossos homens de ciência do século XVI, porque o mais profundo e rigoroso na determinação dos métodos de articulação entre a teoria e a prática, embora com a mesma ambição de esclarecer aspectos e teorias duvidosas directamente ligadas à expansão marítima dos Portugueses.

Aliás, boa parte da sua obra teórica desenvolve-se em cumprimento de missão científica que lhe fora atribuída pela coroa, na qual se incluía o estudo e explicação de fenómenos como os da variação das agulhas, as correntes marítimas, a variação das longitudes a elevação do pólo, o regime dos ventos....

Pelo meio, o seu espírito inquiridor não desprezava a informação mais ampla sobre a história natural, como diz numa das suas cartas: «do mar tirei quanto pude, assim de aves e peixes e ervas para conhecimento das terras». Do mar tirou também, no Roteiro de Goa a Suez, a explicação para as diversas colorações aparentes das águas, como foi o caso do mar vermelho, enviando mergulhadores que lhe mostraram serem vermelhos os corais do fundo, generalizando o método aos diferentes mares, pois «a mesma prática tinha onde quer que o mar parecia verde, e achava pedra coral branca coberta de limo verde, e no mar branco achava areia muito alva sem outra mistura alguma».

Como base da sua atitude de homem de ciência nos alvores do método científico, que impõe a associação entre o cálculo e a experiência empírica, devemos destacar dois textos que pela sua expressividade transcrevemos. O primeiro inserto no Roteiro de Goa a Diu e o segundo do Roteiro de Lisboa a Goa:

Em primeiro lugar, a necessidade de articulação entre a observação e a razão, no caso específico da náutica:

«Esta ciência ou maneira de navegar está mal repartida pelos homens, que ou se põe em idiotas, os quais por longo tempo e contínuo exercício alcançam muitas particularidades, posto que com todos seus trabalhos nunca chegam a ganhar autoridade em seu ofício, ou em pessoas que sem nenhuma experiência, tendo muita cópia de letras e grande prática na ciência das matemáticas, alcançaram a sombra desta arte e não a verdadeira ciência».

É na superação deste divórcio que radicam os caminhos da ciência, a qual alcança um conhecimento sem epílogo, um conhecimento aberto, em constante movimento de aproximação, não compatível com o espírito de sistema. Diz-nos por isso, no segundo texto, que o saber das ciências é «chegado à verdade», e não a verdade absoluta :

«Devemos de considerar quanto lhe devemos por nos ensinar como não ignoremos o chegado à verdade, como são as cousas humanas que os homens podem saber (...). Não somente se deve contar por virtude dar no fito, mas também chegar perto dele».

Esta atitude é idêntica à que expressará décadas depois Francisco Sanches, ao escrever que ao homem de ciência apenas lhe era dado agitar a verdade sem nunca se apossar dela por inteiro, passo que expressa afinal a humildade do cientista perante a infinita complexidade do mundo natural.

Conjugando estes dois aspectos, desenvolveu a sua obra. Por isso, ao procurar a determinação da longitude geográfica, considerou que para tanto «se requer concorrerem assim demonstrações dos matemáticos como a prática e opinião dos pilotos e homens de mar», e ao explicar o movimento da queda dos graves, arrostou de frente com a ditadura da aparência imediata, proclamando a necessidade de «o sentido obedecer ao entendimento».

Estas últimas palavras escreveu-as no Tratado da Esfera, obra onde se inclui um texto célebre sobre a passagem da física do imediato da percepção para o fundo do pensamento: «a vista dos olhos nos perdoe, dê-se por vencida, e confesse nesta parte sua cegueira, por mais aguda que seja, fica sempre nesta parte (a queda dos graves) mui grosseira», referindo-se em concreto à ilusão aparencial que nos fazia crer que os graves, na sua queda, descreviam linhas paralelas entre si, ao contrário do que na realidade sucede, demonstrando à física que caem a prumo e em direcção a um ponto comum identificado com o centro da terra.

Poderia perguntar-se se caso estivesse liberto das preocupações da náutica não teria com esta atitude negado a velha teoria dos acidentes reais ou absolutos em que se estruturava a física aristotélica. Foram Galileu e Descartes que o fizeram, mas a atitude e o princípio estavam definidos antes, na pena de D. João de Castro.

Para terminar, entre as contribuições concretas deste autor para a ciência náutica devemos enunciar a verificação da inexistência de relações de causalidade entre o nordestear da agulha do astrolábio e as mudanças de meridiano; a sensibilidade da agulha magnética à proximidade dos metais, bem como o fenómeno da atracção local.

Aos seus roteiros ficou também muito a dever a nossa cartografia, pois como ele próprio esceveu:«por onde passei assentei todas as terras em alturas e derrotas; e aquelas que me pareceu proveitoso debuxei, para aviso e resguardo de seus pilotos».

Obras
Obras Completas, edição de Armando Cortesão e Luís de Albuquerque, IV volumes, Coimbra, 1968-82.

Bibliografia
Luís de Albuquerque, «D. João de Castro - Os Descobrimentos e o Progresso Científico em Portugal no século XVI», in Bol. da Ac. Int, da Cul. Port., nº 1, Lisboa, 1966, pp. 91-108; id., Ciência e Experiência nos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1983; id., As navegações e a sua projecção na ciência e na cultura, Lisboa, 1987; Luis Filipe Barreto , «O problema do conhecimento na Sphera de D. João de Castro», in Prelo, nº1, Lisboa, 1983, pp. 25-34; id., O Tratado da Esfera de D. João de Castro, in Cultura, História e Filosofia, vol. III, Lisboa, 1984, pp. 227-292; id., Caminhos do saber no renascimento português, Lisboa, 1986; id., os Descobrimentos e a ordem do saber, Lisboa, 1987; A. Teixeira da Mota, «D. João de Castro Navegador e Hidrógrafo», in Anais do Clube Militar Naval, Maio-Junho, 1948, pp. 301-361; Id., Evolução dos Roteiros Portugueses durante o século XVI, Coimbra, 1968.

Pedro Calafate


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