Época Medieval

Renascimento em Portugal

Sob o Signo das Luzes

A Filosofia Portuguesa do Séc. XIX
até à Proclamação da República
A Filosofia Portuguesa depois de 1910

Francisco Sanches



Frontespício de Tratactus Philosophiae, 1649, de Francisco Sanches

Francisco Sanches nasceu no início da década de cinquenta do século XVI, no território então abrangido pela diocese de Braga, tendo neste última cidade efectuado os seus primeiros estudos, após o que se ausentou com seus pais para França, onde escreveu a sua obra e exerceu a actividade de médico e professor na Universidade de Toulouse. Em todo o caso, nunca esqueceu os primerios passos no campo das letras, expressando por mais de uma vez que fora em Braga que despertara para o universo da cultura.

Do ponto de vista filosófico, interessa-nos focalizar a importância da sua obra no plano do conhecimento científico, questão verdadeiramente axial do pensamento moderno. Para o filósofo e médico bracarense, a natureza não é mais um espectáculo de maravilhas onde reverberam os divinos atributos, como um segundo livro simbolicamente interpretado. A sua concepção é a de uma natureza mais objectivada, um universo máquina, dando assim guarida a um pensamento que se quis científico, porque o seu esforço no âmbito da filosofia natural não se orienta mais para a articulação entre o signo e os planos do sagrado ou da moral, ficando assim a natureza desprovida do seu anterior "elan" místico.

É certo que Sanches, como mais tarde Galileu, reconheceu que a ordem do universo traduz a sabedoria de um supremo arquitecto, todavia, no plano da ciência experimental que importava então instaurar, esse mesmo universo é um sistema de leis, devendo excluir todas as formas de conhecimento e de linguagem que implicassem deslocação de sentido. Assim, a posição essencial que segue em todas as suas obras é, como escreveu, «a do filósofo, que olha só para a natureza, mas subordinando-a totalmente a Deus Todo-Poderoso, criador do Universo». Fica pois estabelecido o plano do discurso científico.

Reduzida à condição de objecto, onde impera a geração e a corrupção, num processo contínuo cuja complexidade estamos longe de poder abarcar, o mundo da natureza e o mundo dos homens constituem agora realidades heterogéneas, pois que o primeiro perdeu o seu fundamento íntimo e espiritual.

Referindo-se a essa dualidade fundamental ao problema do conhecimento na ciência e na filosofia modernas, proclama Francisco Sanches que «não há nada de comum entre factos heterogémeos» e, por isso, ao atacar as crendices astrológicas, tão em voga no seu tempo, tranquiliza os seus leitores, dizendo não ser verosímil que a morte de um rei anuncie o violento transbordar de um rio...

O que importa considerar é que das variadas coisas que sucedem no mundo da natureza, nenhuma sucede sem regra, ainda que tais regras possam permanecer desconhecidas para nós, importando ainda ter presente que «todas as coisas, no seu movimento, são iguais para todos os mortais errantes», estabelecendo assim uma das mais importantes condições para a emergência do discurso científico moderno: a homogeneidade do espaço físico, que passa a ser inteligível à luz da geometria euclidiana, bem como a homogeneidade do tempo, que passa a ser entendido como contínuo e uniforme.

Radica também aqui a atitude de desassombramento que anuncia a conquista da natureza pelo método científico. Será também no quadro dessa atitude que emerge a crítica ao princípio da autoridade, bem como o reclamar da autonomia da ciência perante a fé.

Nem a autoridade dos homens, nem a autoridade da fé poderão definir o espírito científico. A dos homens, porque falível, não podendo o conhecimento estagnar nas suas ilusões de saber fechado em sistema; a da fé porque o seu domínio é o da crença, sendo o da ciência o do livre exame.

Um dos aspectos mais interessantes da sua obra é a posição que assume perante a metafísica. Num primeiro momento, repetindo argumentos dos cépticos empíricos, entende que os primeiros princípios não passam de suposições não comprovadas e por isso inúteis para o estabelecimento das ciências naturais, proclamando além do mais a insustentabilidade da definição aristotélica de ciência como conhecimento pelas causas, visto não ser possível caminhar até ao infinito na cadeia das mesmas, havendo pois que parar numa primeira, cuja essência desconhecemos, radicando aí a dimensão da nossa ignorância.

Mas as alegações anti-metafísicas de Sanches não têm valor absoluto. A metafísica é inútil se entendida como base para o estabelecimento do saber no plano das ciências naturais, que reclamam em primeiro lugar a experiência empírica. Todavia, num plano mais avançado da sua obra, entra no domínio da teodiceia ao proclamar, contrariamente ao que afirmara antes, a necessidade de parar em algum ponto na cadeia das causas.

Importa certamente estabelecer, em plano tão amplo quanto possível, a ordem das causas naturais, mas, chegados a este ponto, não implica isso que não devamos ir mais além, escrevendo em texto paradigmático do livro De longitudine et brevitate vitae: «Eu não concordo com Galeno, que submete Deus às leis da natureza, de tal modo que não possa escolher senão o melhor. Logo, são insensatos os que em todas as questões atribuem e procuram somente as causas naturais e segundas e não querem passar além delas. A suprema sabedoria está em deduzir tudo pelas causas intermédias até à primeira e última causa, e a máxima ignorância em se ficar vacilante nas causas médias e imediatas».

Por isso, a diferença fundamental entre o ignorante e o filósofo é a de que o primeiro tudo refere a Deus sem saber porquê, e o segundo chega até ele «como por degraus».

É pois ao nível destes primeiros degraus que se situa a ciência com a autonomia dos seus métodos, no caso em apreço de raíz empírica e fortemente infuenciado pela escola médica dos cépticos empíricos. Com efeito, se houve da parte dos cépticos empíricos uma fase nitidamente desconstrutiva do dogmatismo, houve igualmente um esforço construtivo no plano do conhecimento, embora circunscrito ao mundo fenoménico, sendo neste sentido que devemos interpretar a afirmação de Francisco Sanches de que o caminho que empreende na crítica ao dogmatismo do aristotelismo escolástico é o que emana da ciência médica, desligada da investigação das causas ocultas e tão-só interessada na constatação da sucessão entre os fenómenos, criando a partir daí condições que impedissem a manifestação de factos indesejáveis.

Obras
Francisco Sanches, O Cometa de 1577, edição latina e portuguesa com reprodução fac-similada da edição de 1578, introdução e notas de Artur Moreira de Sá, e tradução de Miguel Pinto de Meneses, Lisboa, 1950.; Francisco Sanches, Tratados Filosóficos, edição latina e portuguesa com introdução e notas de Artur Moreira de Sá e tradução de Miguel Pinto de Meneses, Lisboa, 1955. Inclui: Quod nihill scitur; De divinatione per somnum, ad Aristotelem; In librum Aristotelis Physiognomicon commentarius; De longitudine et brevitate vitae liber; Francisco Sanches, Opera Medica, 1636 (publicada pelo seu discípulo Delassus); Francisco Sanches, «Carta a Clávio», publicada em Gregorianum, 22 (Roma, 1940) e na Revista Portuguesa de Filosofia, 1 (1945).

Bibliografia
Joaquim de Carvalho, Introdução a Francisco Sanches, in Opera Philosophica, Coimbra, 1955; Artur Moreira de Sá, Francisco Sanches Filósofo e Matemático, dissertação de doutoramento em Filosofia, Lisboa, 1947, 2 volumes (contém ampla bibliografia), Lúcio Craveiro da Silva, «Francisco Sanches Filósofo» em Ensaios de Filosofia e Cultura Portuguesa, Braga, 1994, pp. 57-76; id., «Francisco Sanches nas correntes do pensamento renascentino», ibid., pp 77-90; id., «Actualidade de Francisco Sanches», ibid., pp. 91-98.

Pedro Calafate


© Instituto Camões 1998-2000