Época Medieval

Renascimento em Portugal

Sob o Signo das Luzes

A Filosofia Portuguesa do Séc. XIX
até à Proclamação da República
A Filosofia Portuguesa depois de 1910

José Pereira de Sampaio Bruno (1857-1915)

A obra de Sampaio Bruno situa-se, temporalmente, na transição entre os séculos XIX e XX. Do ponto de vista filosófico foi um dos marcos do pensamento heterodoxo português, escrevendo toda a sua vida profundamente marcado pelo sentido da diferença, ao mesmo tempo que lutava arduamente pelo fim da monarquia e pelo advento do regime republicano, luta que dele fez um dos exilados do 31 de Janeiro.

A despeito dos seus primeiros escritos, marcados pela sedução do positivismo conteano (Análise da Crença Cristã (1874)), o qual viria rapidamente a abandonar e a criticar em O Brasil Mental (1898), constituiu núcleo essencial da sua obra a ideia da opacidade do mundo, do seu carácter misterioso, conferindo à linguagem a missão de traduzir essa mesma opacidade, vedada que estava a expressão da verdade na sua nudez singela. Para Bruno, a verdade não é um absoluto dado, e nele se palpa, tanto no pensamento como na sua expressão escrita, o sentido do oculto, ou não fosse a verdade «o erro, aproximando-se indefinidamente da verdade verdadeira, desconhecida». Daí que seja habitualmente considerado um autor difícil, com uma prosa recortada, sinuosa e tantas vezes labirintica, nos antípodas da clareza dos geómetras.

Bruno abriu-se ao mito, à profecia, à revelação, às alucinações auditivas (de que disse ter sido alvo), às sociedades secretas, ao mesmo tempo que expurgou o messianismo do que considerava a sua dimensão acessória para o focar no essencial: a redenção do homem e, com ele e através dele, a redenção universal, acabando por nos traçar uma metafísica da redenção que parte do mistério das origens para terminar na redenção não só do homem, pois recusou a perspectiva antropocêntrica de um certo evolucionismo imperante que à luz do seu critério tem por imoral, mas a redenção universal e fraterna de toda a cadeia dos seres, da natureza no seu conjunto, num processo que se lhe apresentava como a revelação sucessiva de fins divinos, rumo à perdida perfeição de um absoluto misteriosamente alterado.

Há na sua obra permanente exigência de relação ao englobante e, ao mesmo tempo o sentimento de ser englobado no quadro de um monismo que rejeita o dualismo da metafísica cartesiana. Nela encontramos uma noção do real que passa pelo amor, pela comunicação e pela relação profunda do homem com os outros seres -- chegando ao ponto de se fazer vegetariano --, ao mesmo tempo que tudo refere ao passado de uma homogeneidade perdida, rumo ao longínquo e profetizado porvir de uma unidade final a restabelecer: «Em todo o mundo a paz será», a qual «chegará lá para os dias mais confiantes do longínquo porvir», escreveu na sua mais importante obra, a Ideia de Deus (1902).

Por isso, o papel heróico do homem, aquele em que a ideia de liberdade verdadeiramente se realiza não radica no prazer ou no gozo que as modernas conquistas das ciências e das técnicas (no apogeu do positivismo em Portugal e das grandes exposições universais) eventualmente proporcionem, mas num plano bem mais profundo e moralmente superior, qual o de libertar-se a si, libertando os outros seres de um mal gerado pelo mistério da queda e da cisão inicial.

Sobre esta redenção universal, desenvolvida em contexto não teológico mas teúrgico, define três momentos, ou como prefere dizer, «três instantes supremos do crescimento», expressando-os em texto síntese de A Ideia de Deus: «Um: é o espírito homogéneo e puro que foi e há-de voltar a ser. Eis o ponto de partida e eis o ponto de chegada. Outro: é o espírito puro, mas diminuído actualmente pelo destaque separativo do universo. Enfim, o outro ainda: esse universo que aspira a regressar ao homogéneo inicial».

A causa daquela cisão inicial no seio do espírito homogéneo e puro -- que identifica com Deus --, na qual o mal se gerou, e de que resultou a diferenciação e a heterogeneidade, como uma espécie de criação involuntária, constitui para nós um mistério, explicando-se nesta mesma obra: «Nós não podemos compreender como foi esse mistério da diferenciação de parte do espírito puro. Porém, que ele dado se houvesse é necessário: para que um tanto inteligível o enigma universal nos seja».

Colocadas as teses podemos desde já acentuar a dimensão heterodoxa do seu pensamento, pois que se afasta, negando-o, do dogma cristão da criação, e faz da queda uma realidade que atinge não apenas o homem mas uma parte do próprio Deus, o homogéneo misteriosamente alterado, um Deus omnisciente, mas não omnipotente, que sofre com o mundo e desse mundo se aproxima, como companheiro da peregrinante aventura humana. Daí, contrariamente à filosofia cristã que negava a existência e a substancialidade do mal, a defesa que faz da positividade do mal, despertando o esforço heróico de superação e de aproximação à verdade e ao bem, pela diminuição do erro e do mal real, razão por que definiu uma filosofia da história na qual o cerne do «progresso essencial» é de ordem moral.

Esta evolução define um dinamismo a que se refere como a uma «ascensão na convergência do regresso», na qual o próprio Deus, espírito alterado, participa, por isso que também ele sofre da diminuição do espírito puro. Por sua vez, o significado desta ascensão recusará tanto o Deus do catolicismo, como o Deus do deísmo, como rejeita também a tese bíblica do finalismo utilitário das criaturas, de coloração fortemente antropocêntrica. Bem ao contrário, ao homem, à medida que sabe e pode, incumbe um dever para com a natureza inteira, o seu papel é ajudar a evolução da natureza: «Libertando-se a si, libertando os seus irmãos, ele contribui já para a libertação do universo», pelo «trabalho de todas as consciências em amorosa e sábia cooperação», pelo resgate da unidade como limite ideal da história, mas uma unidade concebida não na fórmula antiga da autoridade, mas «unidade na liberdade». Liberdade, entenda-se, como negação do individualismo e do egoísmo, como negação de uma bem-aventurança parcelarista ou de uma salvação pessoal, porque o parcelarismo é por si só rebelde à absorção final e à «infinita sanção do absoluto».

Por isso o verdadeiro messias não é um príncipe morto e ressuscitado pela febre dos ignorantes, nem as nações privilegiadas dos xenófobos, mas tão-só e apenas o Homem.

Foi à luz desta ideia de liberdade e desta noção de dinamismo universal fortemente apoiado em critérios morais que analisou, em O Encoberto a filosofia da história de Portugal, como também defendeu a sucessão evolutiva entre a monarquia, a república e o socialismo. O critério essencial para apreciação do desenvolvimento dos povos e das nações é o seu estado de desenvolvimento moral, o estado de apuramento da sensibilidade e dos costumes, com expressão também ao nível das formas de dominação política.

Nesse sentido, repudiou as duas instituições que a seu ver marcaram o nosso retrocesso e decadência moral, a Inquisição e a Companhia de Jesus, impedindo a afirmação da pátria no seu sentido mais profundo, como lugar da liberdade e princípio de solidariedade colectiva, onde vivifica uma atmosfera de «simpatia inteligente», pela qual arduamente se bateu.

O drama da história de Portugal, um pouco à maneira da consciência dos teóricos da Geração de 70, radicava no primado do autoritarismo e da intolerância, na falta de dignidade moral, num gosto escondido pela crueldade, expresso na forma tantas vezes bárbara como tratámos mouros, gentios e judeus, não esquecendo, na sua moral cósmica, os animais, como estava patente no absurdo e horrendo espectáculo das touradas. Todavia, encontrava já no século XIX, umas résteas de luz que, estimuladas pela acção participativa e militante dos homens, conduziriam o país numa senda de progresso moral, com destaque para a abolição da pena de morte, e para a substituição da caridade pelo «socorro mútuo».

A instauração da república, a que na ordem das coisas se seguiria o socialismo, seria a expressão política e não meramente circunstancial de um passo essencial para a «reintegração no absoluto» e para a erradicação do mal.

Obras
Análise da crença cristã, 1874; O Brasil Mental, 1898; O Encoberto, 1904; A Ideia de Deus, 1902; Notas do Exílio, 1893; Portugal e a Guerra das Nações, 1906; A questão religiosa, 1907; Portuenses Ilustres, 1907; A Ditadura, 1909; O Porto Culto, 1912; Os cavaleiros do amor (livro inconcluso editado em 1996).

Bibliografia
Teixeira Rego, «Unidade de Pensamento em Sampaio Bruno», em Águia, Dezembro, 1915; Leonardo Coimbra, «Bruno Filósofo», ibid., ; Álvaro Ribeiro, Sampaio Bruno, 1945; id., Os Positivistas, 1951; Joel Serrão, Sampaio Bruno -- O Homem e o Pensamento, 1958; Amorim de Carvalho, O positivismo metafísico de Sampaio Bruno, 1960; Eduardo Soveral, «Introdução ao pensamento de Sampaio Bruno», em Revista Portuguesa de Filosofia, 42 (1986), pp. 413-424; Alexandre Morujão, «O itinerário filosófico de Sampaio Bruno», em Revista Portuguesa de Filosofia, 1987; VV.AA. Colóquio "Antero de Quental" dedicado a Sampaio Bruno, Aracaju-Sergipe, 1995; Manuel Gama, Sampaio Bruno, 1995.

Pedro Calafate


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