O livro
De manhã, quando passei à frente da loja
o cão ladrou
e só não me atacou com raiva porque a corrente de ferro
o impediu.
Ao fim da tarde,
depois de ler em voz baixa poemas numa cadeira preguiçosa do
jardim
regressei pelo mesmo caminho
e o cão não me ladrou porque estava morto,
e as moscas e o ar já haviam percebido
a diferença entre um cadáver e o sono.
Ensinam-me a piedade e a compaixão
mas que posso fazer se tenho um corpo?
A minha primeira imagem foi pensar em
pontapeá-lo, a ele e às moscas, e gritar:
Venci-te.
Continuei o caminho,
o livro de poesia debaixo do braço.
Só mais tarde pensei ao entrar em casa:
não deve ser bom ter ainda a corrente
de ferro em redor do pescoço
depois de morto.
E ao sentir a minha memória lembrar-se do coração,
esbocei um sorriso, satisfeito.
Esta alegria foi momentânea,
olhei à volta:
tinha perdido o livro de poesia.
In 1, Lisboa, Relógio d'Água, 2004
"Não tinha sequer uma pistola, mas eliminara a grande fraqueza da existência, fizera desaparecer a primária fragilidade da espécie: não possuía qualquer inclinação para o amor ou para a amizade! E nesse momento, a caminhar em plena rua, desarmado, obdervando de cima os seus sapatos castanhos, velhos, sapatos irresponsáveis como troçava Klober, nesse mesmo momento Walser sentia-se tão seguro - e ao mesmo tempo ameaçador - como se avançasse dentro de um tanque pela rua.
Porém, subitamente, deu um salto para o lado. Quase pisara uma massa alta. Era um homem. E estava morto."
In A Máquina de Joseph Walser, Lisboa, Caminho, 2004
Avaria
Por um curto-circuito eléctrico imcompreensível o electrocutado foi o funcionário que baixou a alavanca e não o criminososo que se encontrava sentado na cadeira.
Como não se conseguiu resolver a avaria, nas vezes seguintes o funcionário do governo sentava-se na cadeira eléctrica e era o criminoso que ficava encarregue de baixar a alavanca mortal.
In Senhor Brecht, Lisboa, Caminho, 2004