| Índice |__

Conto breve (inédito)

Numa iluminação, o escritor recebe uma frase espantosa. Uma frase verdadeiramente acima da média, uma frase de frases, ao mesmo tempo concisa e explosiva, requintada e nova. Um monumento de uma linha, uns quantos pouquíssimos caracteres. Mas, quando se senta para a escrever, a frase já não está lá. Cedeu, resvalou, insegredível. Para onde? O escritor não quer acreditar que tenha desaparecido. Sente-a debaixo da língua, pressente-a ainda na sombra negra das letras que tenta ao acaso, desesperado, enchendo o ecrã. Mas, não, não a agarra mais. Passa dias e dias sentado a olhar o computador e a porra da frase nada. Até que desiste. Depois passam meses, anos, décadas. Uma terça-feira, o homem, de cabelo branco e coração caído, vai no autocarro a olhar as imagens de ruas que são as ruas reais no vidro e lembra-se da frase. Volta a casa, senta-se e, procurando simular uma qualquer espécie de calma, escreve-a. Depois pára, respira fundo. Olha-a com atenção. A verdade é que, na página, a frase não é nada de especial. Diz: A cada coisa sua coisa, ou alguma coisa parecida.

|
| |
|


© Instituto Camões, 2006